quinta-feira, 20 de novembro de 2014

20. E Se...?


Imagine a seguinte hipótese:
Você se encontra deitado na escuridão de teu quarto à noite, de olhos bem abertos e voltados para o teto, embora não consigam ver muita coisa. Inebriado pela fumaça ou simplesmente mergulhado nas profundezas de um transe, você começa a pensar demais: reflete a respeito dos últimos dias; cria ilusões e fantasias; chateia-se com desilusões acerca de alguns fatos da vida.
Mas não demora a inventar situações.
Hipóteses dentro de hipóteses são formuladas.
E se de repente não aparecem somente as hipóteses mais simples, mas também um pensamento inusitado de que na realidade você não está deitado no escuro, mas cego?
Um pensamento incomum invade a tua mente, o tipo de pensamento que talvez não teria nem em seus dias mais difíceis, mas que agora você não consegue evitar. E isso o incomoda profundamente. Afinal, a tua paz se perdeu na obscuridade de um pensamento superestimado.
Trêmulo e tomado por um medo muito irracional, você fecha os olhos, como que negando tudo o que já não pode ver. E tudo o mais parece ficar ainda mais escuro.
Então você se levanta depressa para acender a luz, ainda de olhos fechados. E ainda assim, não encontra coragem para desvendar o mistério, pois teme abrir os olhos ante a possibilidade de a escuridão ser a nova lei que rege o seu mundo particular.
Tomado pelo medo, você volta para a cama e espera em silêncio até cair no sono.
Mas isto é apenas um exemplo um pouco mais extremo. De um tipo de indivíduo repentinamente atormentado por uma incerteza incômoda, talvez culminando em outras ainda mais perturbadoras através dos tempos, talvez sendo esquecida após uma revigorante noite de sono e com o surgimento de um novo amanhecer.
O final da história fica a critério de sua imaginação.
Entenda, o cenário realmente não importa muito.
Você pode estar em qualquer lugar, em qualquer hora, fazendo coisas importantes ou aleatórias, e em algum momento será acariciado ou assaltado por um questionamento algo fora do comum. Acredite, é inevitável.
Eu mesmo conhecia alguém que costumava ser excessivamente realista e se dizia muito incomodado com a elaboração de determinadas hipóteses. Começar uma linha de diálogo com um “E se...?” costumava causar inquietação e ferir a sensibilidade de alguém muito apegado aos fatos, sendo este um fato causador de uma série de conflitos entre nós. Creio que ele apenas tinha medo de viver com medo.
Posso ter o meu excesso de incertezas, estou sabendo. Também sei como às vezes isso me atrai algumas preocupações desnecessárias. Mas não posso simplesmente ser privado daquelas hipóteses que me levam a fazer o que faço.
Os “ses” são chaves que abrem as portas da imaginação para aqueles que criam ou descobrem coisas.
Não fosse a imaginação de alguns, certas possibilidades nunca seriam pensadas. E se tais possibilidades nunca fossem testadas, certos recursos modernos talvez nunca existissem, pois seriam para sempre catalogados como artigos de ficção científica – e talvez fossem mesmo; isto é, pelo menos na ocasião em que foram concebidos por aqueles visionários vistos como meros sonhadores.
Se cientistas não tivessem perguntado a si mesmos o que poderia acontecer se testassem ou combinassem um ou mais elementos até então desconhecidos, talvez nunca teriam descoberto a cura de muitas doenças.
Por outro lado, o conhecimento também tornou possível a criação da bomba atômica.
Hipóteses. Situações. Dúvidas. Conflitos. Pensamentos.
Tudo isso pode começar com um dos incontáveis “ses” que nos deixam inquietos ao longo de nossas vidas.
Mas às vezes, um “se” é tão somente uma hipótese solta no ar, sem maiores significados.
Pode vir numa pergunta singela que você ouviria de um adulto e de uma criança – e que poderiam muito bem ser a mesma pessoa, mas em tempos diferentes.
De qualquer modo, não demoramos a pensar novamente em hipóteses um pouco mais incômodas, como aquela sugerida logo no início.
Tua mente é o teu purgatório particular, o lugar perfeito para se confessar e reavaliar a si mesmo. Muitos de meus fantasmas e demônios internos são expulsos quando eu persisto em me expressar a partir de uma ou mais questões existenciais que se espalham na grande miscelânea de pensamentos que é a minha mente inquieta. Gosto de dialogar comigo mesmo.
Eu me pergunto, por exemplo, se a maldade continuaria existindo caso a gente nunca mais morresse. Quero dizer, ela teria motivos para existir? Penso que a maldade vive porque sabemos que um dia vamos morrer. Nós queremos ter uma passagem mais confortável por este mundo, e isso muitas vezes nos leva a querer pisar em outros que apenas querem o mesmo.
É claro, talvez seja simplesmente pela ausência de amor entre os semelhantes.
E eu aqui, viajando nas ideias!
Mas e se o nosso fardo for a eterna repetição de nossa viciosa imperfeição?
E se tudo o que vemos e vivemos for somente uma comédia de erros, mas sem risadas ao fundo?
Se você quiser, eu posso ir mais longe.
E se a nossa existência for somente um filme muito longo? Ou então uma série de fotografias em um grande álbum cósmico – e há muito a nossa vida já havia sido vivida e experimentada, sendo hoje apenas uma série de memórias revisitadas muitas e muitas vezes, sem a gente perceber?
Pense nisso.
Então pense o seguinte: e se a nossa vida for nada além de um romance ou de uma peça teatral muito bem encenada? E se nossos pais, amigos e familiares forem somente atores muito talentosos cumprindo papéis e influenciando os rumos da existência de nossa personagem?
Pense bem, isso talvez justificasse a imposição de tradições no mundo. Todos teriam recebido um roteiro bem detalhado, assim como a orientação do dramaturgo de que tudo ali deveria ser seguido à risca, a despeito de eventuais improvisos tolerados por ele. Sua vaidade de autor deveria ser alimentada.
Mas é só uma hipótese.
E se eu não for o protagonista de minha própria história, mas apenas um dos muitos fragmentos de um grande mosaico?
E se eu for um mero objeto solto no cenário?
E se eu não for amado, nem odiado, mas observado com indiferença pelo universo?
E se nossas histórias forem parecidas, a cópia da cópia?
E se estivermos sozinhos?
E se não estivermos?
E se não existir vida após a morte? E se existir?
O que aconteceria se todas as certezas se dissolvessem de uma só vez? E se todas incertezas fossem derrubadas como muralhas, restando somente os escombros e a poeira?
Todas as coisas, elas existem e não existem ao mesmo tempo.
Todas as coisas se tornam existentes a partir do momento em que você as percebe.
Elas já não existiam antes de percebê-las, e mais uma vez deixam de existir no exato instante em que as primeiras dúvidas aparecem. Por toda a tua vida, ideias conflitantes se debatem e se contorcem entre os compartimentos secretos de tua mente, e isso se repete sem maiores interrupções ou intervalos até o dia em que a tua vida finalmente se esvai, a tua consciência se apaga e deste mundo desaparece. Neste ponto, tudo o mais se torna inexistente, inclusive você.
E se todas essas ideias sumirem?
E se nunca mais as dúvidas e perguntas existirem?
E se ninguém mais questionar?
E se ninguém mais tiver o que buscar? Qual seria, então, o sentido da vida?
E se realmente ficarmos cegos – não literalmente dos olhos, mas da mente?
E se o mundo for feito de escuridão novamente?
Concluo que talvez não seja simples ou mesmo possível tirar conclusões sobre certos questionamentos que inesperadamente nos assombram. Então você se deita na escuridão de teu quarto à noite, e aquela mesma pergunta que ficou martelando em tua cabeça o dia todo, ela continua a incomodá-lo até quando o sono finalmente chegar. Se o sono chegar. O tempo pode passar e nos empurrar com grande violência, mas algumas perguntas aparentemente ficarão sem resposta.
Tudo fica a critério de nossa imaginação fértil.

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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

19. Presença (II)

(Continuação de Presença)


Não, eu não sumi de vez.
Eis-me aqui.
De novo.
Não pense você que eu finalmente me esqueci de teu rosto. É praticamente impossível, mesmo se eu quisesse e muito tentasse. O teu rosto, a tua lembrança, insistentes como são, eles não me permitem o dom do esquecimento permanente.
O primeiro passo para a nossa liberdade deveria ter sido a completa ausência de luto. E uma vez que o luto invadiu meus pensamentos, ele tem me atormentado em meus sonhos de olhos abertos.
Tenho me afogado no sal das lágrimas e da saliva e na amargura de meu sangue quente. Mas somente às vezes, devo dizer. Isso é quando me sinto mais solitário, sem encontrar o conforto de tuas palavras sussurradas ao ouvido, de tua voz mansa e suave, de teus abraços e calorosos beijos.
Fortes são os meus sentimentos.
Muito mais eu senti depois de tomar conhecimento de tua partida prematura.
E mais amolecido tornou-se o meu coração aparentemente blindado.
Tragédia das tragédias! Hoje eu sou aquele que derrama lágrimas ao ouvir e testemunhar histórias com finais felizes ou quando escuta canções românticas e tristes no rádio.
O que fez comigo, anjo de vidro?
Depois de vê-lo quebrar uma de tuas asas para que o teu desejo o conduzisse para o lado humano que sempre existiu em você, eu vi crescer e aumentar uma das pequenas rachaduras de tua fragilidade, e aos poucos vi o meu anjo se despedaçar por inteiro. Nada pude fazer.
Nem a mim você quis escutar.
Sua escolha fez: da minha mão você se soltou.
E isso fez de mim um homem igualmente frágil.
Tudo bem, grande tolice foi eu ter pensado que poderia simplesmente seguir em frente sem ter reconsiderado tudo o que foi deixado para trás: as coisas que senti e aprendi quando a tua presença era muito mais real, e não a de um mero fantasma sussurrante, incapaz de sair desta prisão de lembranças na qual o trancafiei.
Prometi o silêncio, mas tenho feito de você um assunto a ser lembrado e relembrado entre todos os que vieram depois, um fato que às vezes me faz pensar se eu não estaria sendo injusto ao trazer a tua memória à tona e não permitir que descanse em paz.
Mas, sinto muito, simplesmente não consigo evitar.
Todos os que ficam sentem as consequências do vazio que cresce no interior de um peito golpeado pela ausência e pela solidão. E este vazio eu só consigo preencher razoavelmente bem ao verbalizar muitas daquelas lembranças que costumavam ficar trancadas a sete chaves.
Para elas não morrerem com você.
Mais e mais pessoas conheceram e conhecem a nossa história, que, apesar de não ter nem chegado perto de durar aquela eternidade prometida, foi suficientemente longa para ter um impacto maior ou semelhante ao de tantas outras histórias muito mais duradouras.
Repleta de altos e baixos, de alegrias e tristezas, a nossa história foi contada e recontada diversas vezes. E em muitos sentidos, essa é uma história que se repete, mudando-se apenas os personagens.
Foi tudo muito puro em suas intenções.
O amor pelo amor.
Mas também foi desafiador em todos os sentidos.
Muitas vezes sou surpreendido por perguntas difíceis ou sem respostas.
De tudo o que pude ou quis contar, falei sobre os encantos e desencantos, sobre como desafiamos a este mundo sem cores, sobre as diferenças que nos completavam, sobre os nossos sonhos, nossos medos e delírios, sobre os erros e acertos de ambas as partes. Sobre os teus conflitos internos, e a luta contra a solidão e contra o demônio na garrafa...
Sabe, ter partido não faz de você um exemplo de perfeição desencarnada, tornando-se automaticamente intocável. No entanto, eu também sei que não pode mais se defender.
Mas tenho pensado melhor, e hoje reconheço que também não posso mais unir os fragmentos deixados pelo anjo de vidro. Simplesmente não há mais conserto.
“O que está feito, feito está.”
E também sei que você não vai mais voltar.
Depois de algum tempo, e depois de ter colocado tudo em perspectiva, algumas coisas mudaram desde então.
Nunca tive um súbito despertar que me arrebatasse dos sonhos de olhos abertos, mas o tempo foi o grande encarregado de cuidar da transição do nosso fim para o meu recomeço. Muitos silêncios reflexivos foram necessários para que aquele garoto assustado se transformasse aos poucos neste homem mais seguro de seus sentimentos e muito mais ciente de seu lugar no mundo, ainda que um tanto marcado pela fragilidade herdada pela tua desistência.
Mas agora penso ter finalmente encontrado o caminho para uma segunda chance.
É o começo de uma nova vida, com novos amores possíveis.
Quero pensar nisso como o começo de um novo ciclo.
Ou a continuidade de uma nova percepção.
Sabe, tenho aprendido muito com esse buraco que você um dia cavou em meu peito, o lugar em que veio habitar quando tornou-se uma lembrança que nunca dorme. E entre as lições aprendidas, talvez a mais importante tenha sido a descoberta de que o amor também é sobre ter a humildade de saber deixar o outro partir.
Eu amo você. Sempre amarei.
Por favor, descanse em paz.
Jamais poderei esquecer que um dia você significou tudo para mim, mas suplico que solte a minha mente e a liberte dos pensamentos obsessivos que levam o teu nome, assim como um dia deu-me uma suposta liberdade quando soltou a minha mão.
Então, por favor, liberte-me de uma vez de tua presença ausente.
E mesmo que não possa mais me ouvir, isso eu ainda quero te dizer: nunca se esqueça de que sempre amarei você.
Fim.
...
E então…
E então…
...
E então, pode dormir agora?

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terça-feira, 15 de julho de 2014

18. Carta ao Filho


Filho,
os motivos que me levam a escrever essa carta não cabem em linhas no papel, mas somente dentro de meu peito infinito em emoções, das mais visíveis às mais secretas. Nunca me imaginei escrevendo para você, mas hoje me veio, de repente, uma vontade de tentar me comunicar de uma maneira que finalmente faça a gente falar a mesma língua. E eu escrevo essa carta na esperança de que essas palavras tragam algum conforto ao teu peito jovial e à tua alma muito além deste mundo, ainda que exista algo de muito humano em você.
Gostaria de poder dizer ter conhecimento de todas as manifestações de seus sentimentos, mas não posso, e nunca lhe foi negada a liberdade de ir e vir ou mesmo de existir sem maiores questionamentos... de minha parte, é claro. Por outro lado, do lado de fora de tuas paredes brancas, a história é um tanto diferente, meu filho, e nada podemos fazer senão prepará-lo.
Mas o conhecemos muito bem. Ou o suficiente. Desde os primeiros segundos de seu nascimento, sua vontade em ser notado como uma criatura viva foi manifestada antes da palmada do doutor tê-lo feito chorar. Mas depois, por algum motivo obscuro, você se transformou em um garoto muito reservado, que gritava quando tinha o seu espaço invadido ou mesmo quando era arrancado de seu mundo. E eles ainda ousavam roubar o seu nome e o batizavam com outros que não eram de seu gosto, quando tudo o que você sempre quis foi ter o direito de preservar a sua identidade. Hoje penso que talvez seja essa a principal fonte da grande fúria que desde sempre tem habitado em teu peito. No passado, lembro-me dos muitos surtos de quando todos o contrariavam e o apelidavam com o diminutivo do nome do pai. Ninguém nunca pensou que talvez você apenas gostasse de ser único e original, e talvez não quisesse viver e morrer à sombra de outra pessoa, mas não por uma vergonha inventada por outros.
E lembro-me de quando você sorria e discretamente comemorava suas pequenas vitórias diárias, como quem sempre sentiu ter algo para provar a si mesmo, mas sem querer atrair uma atenção pegajosa que nunca pediu para si, e a gente sorria quando você aceitava dividir suas alegrias. Tudo estava bem. Mas a gente logo sabia quando não estava, ao vê-lo entrar em casa com uma visível e gritante frustração estampada no rosto. Quando a gente perguntava o que houve, você logo dizia que poderia suportar as pequenas derrotas, mas não suportava ser perturbado por seus semelhantes. Mas, aparentemente, você não poderia ser humano igual a eles e ainda ter a ousadia de cometer erros.
A vida é como um grande teste. Quando o resultado aparece, você respira aliviado ao ver que tudo parece finalmente em ordem. E mesmo quando a vitória é uma promessa, você sabe que ainda é humano e que pode errar a qualquer momento. Sentir aquele frio na barriga causado pelas expectativas ou ter de prender a respiração, e depois descobrir que pode respirar aliviado, isso é o que torna a experiência de viver muito mais intensa e completa. E considerando que a gente sabia que você sabia ter noção, responsabilidade e controle sobre os próprios rumos tomados, nunca nos preocupamos de verdade em vê-lo perdido na sombra de erros fatais. O que talvez não fosse de todo um acerto. Pois como descobrimos mais tarde, o seu excesso de comedimento se tornaria sua prisão.
Muitos queriam desumanizá-lo, era o que nos dizia. Queriam transformá-lo em um ser perfeito, mesmo contra a sua vontade. Em um ser sem vontades ou sentimentos humanos. Queriam transformá-lo em uma tecnologia programada por baixo da pele humana, como uma máquina perfeita de calcular as quatro operações fundamentais, movida a baterias recarregáveis. Ou mesmo em um artefato mágico, como um livro que revelasse todos os segredos do universo. Isso o fez acreditar que todo o restante do mundo queria fazer o mesmo.
Você queria gritar aos quatro ventos que ainda era humano e que sentia.
E você gritou.
Seu comportamento mais reservado durou até uma certa tarde de verão, quando acordou de um cochilo e aos gritos pediu para não morrer. Mas morreu. Morreu simbolicamente. E desta morte você ressurgiu diferente, renascido em uma nova vontade, acumulando em teu peito o que depois viria a ser um grito livre de vida nova.
E ainda assim, foi o início de uma fase mais obscura. Uma sombra de dor, preocupação e tristeza pairou sobre você e sobre a gente, mas também trouxe mudanças significativas em nossas vidas. Por exemplo, do seu jeito e em meio ao desespero, você tem se afeiçoado um pouco mais aos teus pais. Talvez por medo de ser tão jovem e já se sentir tão perdido, mais ou menos como um filho que bem mais tarde sente aquela ânsia de regressar ao conforto dos braços daqueles que nunca o abandonaram, mas que por ele foram esquecidos, com a diferença de que você ainda era muito jovem e ainda se encontrava entre nós, apesar do muro que separava o seu mundo do nosso. O muro que supostamente o torna diferente de nós.
Olá, filho. Nós ainda estamos aqui.
Conhecemos quase todos os seus segredos, todos os seus sonhos e anseios. Dizem que coração de mãe não se engana. E também não pense no pai como um ser indiferente, alheio ao desespero silencioso de seu filho, pois sentia e sofria em silêncio. Planejamos você com todo o empenho e carinho de pais que sonhavam com a sua vinda, o grande evento de nossas vidas, mas não para vê-lo mais tarde afogando-se nas próprias lágrimas, um garotinho assustado e com medo da própria sombra, que desde muito cedo tem sentido a maturidade amarga e sombria dos adultos, acreditando que a vida não espera todo o tempo do mundo para ser cruel e miserável.
Pense no pai e na mãe como seus melhores amigos. É verdadeira a nossa satisfação em vê-lo em sua busca por amigos verdadeiros lá fora, confidentes de suas lágrimas secretas e de tudo o que nos conta apenas pela metade ou através de códigos indecifráveis, ditos em voz alta ou por escrito. Mas a gente gostaria de vê-lo buscar um pouco mais da amizade de teus pais. De onde estiver, filho, saiba que, mesmo não contando tudo o que gostaria de nos contar, você tem a nossa atenção, a nossa compreensão e todo o nosso apoio. Estamos com você. Gostaria de poder dizer que sempre estaremos por perto para ouvi-lo, mas temos a amarga compreensão de que isso é humanamente impossível. O tempo passa e um dia seremos poeira. Teus pais, teus amigos e todos os seus amores de vidro, frágeis e humanos. Humanos, frágeis e finitos como você.
Temos conhecimento de sua grande aflição. De sua preocupação com a condição de mortal que aflige a todos nós. Do medo em ter de ver essa mortalidade manifestando-se outras e outras vezes diante de seus olhos... até aquele momento em que nada mais pode ser visto ou sentido. Nada que mereça nosso temor e nossas lágrimas. Nem as suas. Mas não podemos falar por você, que é o único conhecedor das razões que o levam a se sentir afetado por mais esse fato da vida.
De qualquer modo, seus gritos foram ouvidos das profundezas do poço, e aos poucos você foi sendo trazido para fora da escuridão. Finalmente descobriu que o seu poço particular era apenas uma ilusão de sua mente inquieta, que tem sido domada pela intensidade de seus sonhos e desejos, assim como por aquele novo fôlego de vida que vem se acumulando desde o exato instante da morte do seu velho eu. E hoje, mesmo que o futuro seja obscuro e incerto, você tem acreditado nele.
Tudo isso a gente viu e tem visto.
Quase nada tem passado batido.
Temos assistido e participado do teu sucesso, muito maior do que o sucesso de uma carreira profissional ou de meras facilidades na vida, mas o sucesso de seu retorno do mundo dos mortos, o lugar em que sua mente esteve por muitos anos, mesmo quando esteve acordado e respirando. Por muito tempo esteve observando o lado de fora, e tem feito isso de longe, mas agora tem desejado mais e mais fazer as pazes com a humanidade e com você mesmo. É verdade que certos dias são feitos de altos e baixos, o que é natural em nossa condição de seres humanos, mas percebemos que isso tem melhorado aos poucos, conforme mais um novo dia é concedido e acrescentado na contagem de seus dias.
Hoje podemos não saber muito bem onde você ou sua mente estão... às vezes, quero dizer... mas sabemos que hoje você vive sob controle, pelo menos um pouquinho mais do que ontem. Não tem mais olhado tanto para aqueles dias sombrios como se eles significassem o começo do teu fim, mas tem aprendido com a experiência de tê-los vivenciado. E agora só me vem aquela agradável sensação de que nossa missão finalmente foi cumprida. Fizemos a nossa parte.
Filho, a nossa vontade é de te dizer muito mais. Nosso grande testamento. Mas essa carta ficou maior do que o esperado, algo entre frente e verso e um pouco mais. E como provavelmente deve ter percebido, meus olhos verteram lágrimas que borraram a tinta no papel, e se eu tiver de escrever um pouco mais, é bem possível que não consiga ler nem a metade. Sei que vai rir, mas não me importo de verdade com isso. Prefiro ouvir suas risadas a ter de ouvir os seus lamentos durante as longas madrugadas.
Encerro essa carta com algumas orientações.
Filho, tenha um pouco mais de paciência com a gente. Querendo ou não, mesmo com todas as diferenças, você não é assim tão distante e diferente de nós.
E por mais quieto, reservado e defensivo que o pai tenha sido desde sempre, tenha um pouco mais de paciência e compreensão. Tudo o que ele mais deseja na vida é ter um pouco de paz e sossego ao lado da família. E sendo o único membro vivo da casa de seus pais, ele agora só tem esposa e filho e precisa de carinho e atenção.
E eu sei o que você pensa a respeito de ser filho único. É bem possível que a sua vida tivesse sido um pouco diferente se a gente tivesse conseguido um irmão ou uma irmã que pudesse te fazer companhia, a quem pudesse servir de exemplo ou em quem pudesse se espelhar. Com irmãos, as atenções seriam divididas e você se veria um pouco mais livre daquela velha pressão em ter de arcar com todas as expectativas de teus pais, uma pressão afligida a si mesmo, considerando que sempre permitimos que fosse livre. Mas pense um pouco a respeito. Talvez você teria sido uma pessoa completamente diferente. Possivelmente teria se tornado somente mais um ser genérico, não sendo esse ser único e brilhante de quem tão bem ouvimos falar. E isso, sim, teria sido decepcionante. Gostamos de quando vemos as pessoas finalmente aprendendo a olhar por baixo de sua expressão carrancuda e de seus olhos tristonhos. Por baixo da máscara de homem mau que você tem usado para afastar todos aqueles homens que se orgulham de seus olhares superficiais.
Temos orgulho do homem que você se tornou, tão maravilhosamente humano e imperfeito.
Filho, por último, mas não menos importante... Gostaria que você soubesse que te amamos hoje, amanhã e sempre. E essa é a grande herança que reservamos especialmente para você.


Com amor e carinho,
Papai e Mamãe.

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sexta-feira, 30 de maio de 2014

17. Tabu


Perdoe-me por quebrar tuas ingênuas expectativas e por cuspir em quase tudo o que aprendeu desde os teus primeiros dias, mas o meu dever nunca foi o de acariciar a tua cabeça preenchida de velhas caraminholas.

Tenho comigo as mil vozes geladas de antigos fantasmas; e às vezes, das profundezas de meu peito essas vozes sobem à minha boca e sussurram em teus ouvidos, enquanto apoio a minha mão pesada em teu ombro, tal como faz um encosto que não pode ser para sempre ignorado.

Perdoe-me, mas esses fantasmas existem.

Perdoe-me, mas existo.

Aliás, para dizer a verdade, realmente não vejo como necessário o teu perdão, tampouco clamei por isso. Mas não pense que o culpo por tudo, apesar de ser tua – e somente tua – a grande decisão de enxergar a nossa existência como o fim gentil de um longo sono repleto de sonhos confusos. Ou de senti-la como um forte murro na boca do estômago... assim, recebido de surpresa.

Faça sua escolha.

São fúteis as tentativas de me varrer para debaixo do tapete, como se isso fosse me fazer desaparecer ao ser esquecido, do mesmo modo que a poeira nunca desaparece de vez. Sim, talvez suma por algum tempo, muito brevemente, mas logo sou apontado e mencionado de novo por alguém conhecido ou em conversas aleatórias entre desconhecidos nas filas. Nem sempre soo lisonjeiro nos lábios alheios, mas nos dias de hoje isso é um pouco diferente, e, dependendo do caso, às vezes divido opiniões: uns me abominam e outros me defendem, enquanto outros tantos ainda ficam em cima do muro.

Sou muito associado a polêmicas de todos os tipos e naturezas. Pouco ou nada se conclui, mas ainda sou um objeto controverso de discussões nem sempre acaloradas, surgindo muito nas trocas de olhares constrangidos e nas entrelinhas.

Meus mil nomes são sussurrados.

Falam baixo como se falassem de segredos sujos.

Sou o inominável.

É verdade, nem todos os fantasmas são agradáveis. Muitos são realmente perturbadores, e quase que por unanimidade alteram as moléculas de quem ouve seus nomes, então desestabilizam a esse ouvinte hipotético e alteram o seu estado de espírito, seja por indignação ou por uma culpa não confessada. De qualquer modo, não deveriam agir como se esses fantasmas não existissem, mas aconselho a falarem mais a respeito. Seria um grande erro me silenciar quando atendo pelo nome de um desses fantasmas, principalmente quando isso significa a diferença entre a justiça e o efeito da omissão de quem finge não ver e de quem parece não se importar.

Mas na maioria das vezes, a mim são atribuídas tolices ancestrais ou fantasmas que não mais deveriam ser fantasmas, incômodos que doem apenas nos ombros e nas costas de incomodados sem causa, de controladores da liberdade alheia. São indivíduos com causas perdidas, mas ainda não sabem ou não querem admitir a derrota.

Pensam em mim como um princípio de moral e decência, como um velho discurso de tradições a serem mantidas, um acalentador dos supersticiosos, uma muleta para os ignorantes.

Sou conveniente para muita gente. Muitos prosperam e assumem uma soberania baseada em ideias que consideram intocáveis, enquanto outros tantos acreditam neles e sustentam tais ideias por viverem no medo. Nenhum problema com isso, é claro...

Pelo menos até o dia em que o homem vê os estilhaços de seu próprio teto de vidro.

Vemos, então, a queda de muitos homens, grandes e pequenos, quando eles veem suas convicções sendo implacavelmente esmagadas. Mas ao invés de aprenderem com isso, muitos se perguntam onde erraram antes mesmo de tentarem encontrar a si mesmos.

E assim, o mundo continua girando na submissão aos indivíduos de mente fechada.

Isso é o que acontece por esquecerem de fazer uma coisa não muito simples, mas possível; um mal necessário que significa a diferença entre a liberdade e a continuidade da tradição de me verem como uma sombra que paira sobre o homem:

Estou aqui para ser quebrado.

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segunda-feira, 26 de maio de 2014

16. Expectativas


Vejo a nós dois, meu caro amigo, folgados em espreguiçadeiras e assistindo ao pôr do sol.
Nenhum pensamento vem à mente, apenas o silêncio quebrado de leve com as ondas do mar. Fugimos da loucura, do caos, dos gritos e da fumaça da metrópole, e então sentimos a maresia acariciar nosso rosto ao fim do dia. Isso é o futuro. Pode ser visto de muito longe, no horizonte além-mar e distante do alcance de nossos olhos, mas que de qualquer modo ali ainda está.
O tempo caminha em um ritmo levemente desacelerado, eternizando a imagem e o momento como que na contemplação de uma bela pintura viva. De perto vemos o sol descendo e sumindo, visão não mais obstruída por torres altas e cinzentas, mas livre.
Livre como nossos espíritos.
Dizem que o tempo voa quando estamos bem acompanhados, mas isso é um pouco de ilusão das grandes cidades, onde o dia parece durar bem menos que o tempo entre o bater das asas de um beija-flor. Você não sente, mas a vida cria asas e foge de suas mãos.
Preocupações e necessidades, as pessoas deste lugar também as carregam, mas o senso de urgência desaparece aos poucos na calmaria, no mormaço e na brisa.
Isto é vida, meu amigo.
Paramos o tempo e o observamos.
E às vezes lançamos comentários soltos a serem arrebatados pela ventania.
Dispensamos os sapatos e marcamos a areia com as nossas pegadas.
E nos tornamos livres... de novo, livres como nossos espíritos.
Neste lugar, abandonamos todo o pudor exagerado das outras cidades, grandes e pequenas, com aquela velha necessidade de escondermos nossas supostas falhas com um excesso de pano, com os maneirismos e as vaidades habituais. Neste lugar, somos quem somos, ou algo próximo disso. Todas as belezas são naturais, mesmo as rejeitadas conchinhas quebradas.
Pode não ser o lugar mais belo do mundo, mas é o meu novo lar.
Minha enorme caixa de areia com mil e uma novas possibilidades.
E maior que a minha velha caixa branca de maravilhas guardadas.
Isso é o futuro, meu caro amigo.
Fugimos da loucura, que vem ao nosso encontro somente nas altas temporadas com os seus turistas e suas músicas altas. Mas tudo bem. São suficientes as demais noites bem dormidas. Somente os cães, muito sensíveis aos eventuais e isolados barulhos na calada da noite, com os seus latidos eles quebram o silêncio e gelam a nossa espinha naquele momento em que tentamos imaginar o que tão subitamente teria atraído sua inteira atenção.
Quando as músicas e os fogos de artifício invadem céus e ruas, no entanto, eles não podem correr, e assim os ganidos e latidos dos pobres acorrentados são abafados pelo zumbido.
Não somos perfeitos, é verdade.
Não somos assim tão diferentes dos turistas habituais, pois o homem moderno carrega os frutos da civilização – tanto os bons como os maus – para todos os lugares. Mesmo as cidades do campo não são mais silenciosas. E nas areias há palitos e garrafas de vidro enterrados, mesmo em dias nublados, menos tumultuados de mesas, guarda-sóis e peles queimadas.
Mas temos muito a aprender na contemplação do que restou de bonito neste mundo.
Também vejo um castelo de areia parcialmente arruinado, obra de algum garoto que esperava construir algo tão perfeito, mas que logo viu essa perfeição ser desmanchada pelo avanço da maré. Tento imaginar a frustração estampada em seu rosto, sua vontade de desistir. Desistiu, mas outros tantos tentariam de novo, indo até o limite de sua vontade em realizar um sonho.
Pensando nisso, mas vindo como um gesto inesperado, com o dedo começo a escrever palavras soltas na areia, logo ao lado do castelo arruinado. Elas nada significam para você agora, meu caro amigo, mas logo mais significarão. Quando finalmente voltarmos para casa, terei algo novo a dizer, uma nova ideia transferida para o papel depois de tamanha inspiração que sinto neste lugar. Com a mente, o corpo e o espírito mais leves e purificados pelo sal da água, afastado das enormes bolhas poluentes, não há como me sentir pouco ou nada inspirado.
E então inclino um pouco o meu corpo para o lado, e meu dedo rabisca mais palavras ao lado das demais, e então...
Derrubo a mim mesmo da espreguiçadeira.
Sim, eu caio de rosto na areia.
De não muito longe, eu já posso sentir a tua gargalhada chegando aos meus ouvidos. Ouço você beirando à histeria, e por um breve momento eu considero o exagero da tua reação. Mas neste lugar, diferente de tantos outros, eu estou um pouco mais livre do pavor que sinto de ser alvo de um enorme constrangimento. A vida é curta demais para a gente se importar com isso. Tudo o que eu faço é erguer o meu rosto, cuspir um pouco de areia e olhar para você.
E assim eu rio por último. Rio junto.
E o sol ainda sorri enquanto cede espaço para a lua poder brilhar sob a sua luz, enquanto as ondas do mar seguem o seu rumo, apesar de nós e nossas risadas.
Estou contente.
E eu quero dividir este contentamento com você.
Tudo isso eu já consigo ver de dentro da caixa branca.
Pois esse é o futuro, meu caro amigo.


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