terça-feira, 15 de julho de 2014

18. Carta ao Filho


Filho,
os motivos que me levam a escrever essa carta não cabem em linhas no papel, mas somente dentro de meu peito infinito em emoções, das mais visíveis às mais secretas. Nunca me imaginei escrevendo para você, mas hoje me veio, de repente, uma vontade de tentar me comunicar de uma maneira que finalmente faça a gente falar a mesma língua. E eu escrevo essa carta na esperança de que essas palavras tragam algum conforto ao teu peito jovial e à tua alma muito além deste mundo, ainda que exista algo de muito humano em você.
Gostaria de poder dizer ter conhecimento de todas as manifestações de seus sentimentos, mas não posso, e nunca lhe foi negada a liberdade de ir e vir ou mesmo de existir sem maiores questionamentos... de minha parte, é claro. Por outro lado, do lado de fora de tuas paredes brancas, a história é um tanto diferente, meu filho, e nada podemos fazer senão prepará-lo.
Mas o conhecemos muito bem. Ou o suficiente. Desde os primeiros segundos de seu nascimento, sua vontade em ser notado como uma criatura viva foi manifestada antes da palmada do doutor tê-lo feito chorar. Mas depois, por algum motivo obscuro, você se transformou em um garoto muito reservado, que gritava quando tinha o seu espaço invadido ou mesmo quando era arrancado de seu mundo. E eles ainda ousavam roubar o seu nome e o batizavam com outros que não eram de seu gosto, quando tudo o que você sempre quis foi ter o direito de preservar a sua identidade. Hoje penso que talvez seja essa a principal fonte da grande fúria que desde sempre tem habitado em teu peito. No passado, lembro-me dos muitos surtos de quando todos o contrariavam e o apelidavam com o diminutivo do nome do pai. Ninguém nunca pensou que talvez você apenas gostasse de ser único e original, e talvez não quisesse viver e morrer à sombra de outra pessoa, mas não por uma vergonha inventada por outros.
E lembro-me de quando você sorria e discretamente comemorava suas pequenas vitórias diárias, como quem sempre sentiu ter algo para provar a si mesmo, mas sem querer atrair uma atenção pegajosa que nunca pediu para si, e a gente sorria quando você aceitava dividir suas alegrias. Tudo estava bem. Mas a gente logo sabia quando não estava, ao vê-lo entrar em casa com uma visível e gritante frustração estampada no rosto. Quando a gente perguntava o que houve, você logo dizia que poderia suportar as pequenas derrotas, mas não suportava ser perturbado por seus semelhantes. Mas, aparentemente, você não poderia ser humano igual a eles e ainda ter a ousadia de cometer erros.
A vida é como um grande teste. Quando o resultado aparece, você respira aliviado ao ver que tudo parece finalmente em ordem. E mesmo quando a vitória é uma promessa, você sabe que ainda é humano e que pode errar a qualquer momento. Sentir aquele frio na barriga causado pelas expectativas ou ter de prender a respiração, e depois descobrir que pode respirar aliviado, isso é o que torna a experiência de viver muito mais intensa e completa. E considerando que a gente sabia que você sabia ter noção, responsabilidade e controle sobre os próprios rumos tomados, nunca nos preocupamos de verdade em vê-lo perdido na sombra de erros fatais. O que talvez não fosse de todo um acerto. Pois como descobrimos mais tarde, o seu excesso de comedimento se tornaria sua prisão.
Muitos queriam desumanizá-lo, era o que nos dizia. Queriam transformá-lo em um ser perfeito, mesmo contra a sua vontade. Em um ser sem vontades ou sentimentos humanos. Queriam transformá-lo em uma tecnologia programada por baixo da pele humana, como uma máquina perfeita de calcular as quatro operações fundamentais, movida a baterias recarregáveis. Ou mesmo em um artefato mágico, como um livro que revelasse todos os segredos do universo. Isso o fez acreditar que todo o restante do mundo queria fazer o mesmo.
Você queria gritar aos quatro ventos que ainda era humano e que sentia.
E você gritou.
Seu comportamento mais reservado durou até uma certa tarde de verão, quando acordou de um cochilo e aos gritos pediu para não morrer. Mas morreu. Morreu simbolicamente. E desta morte você ressurgiu diferente, renascido em uma nova vontade, acumulando em teu peito o que depois viria a ser um grito livre de vida nova.
E ainda assim, foi o início de uma fase mais obscura. Uma sombra de dor, preocupação e tristeza pairou sobre você e sobre a gente, mas também trouxe mudanças significativas em nossas vidas. Por exemplo, do seu jeito e em meio ao desespero, você tem se afeiçoado um pouco mais aos teus pais. Talvez por medo de ser tão jovem e já se sentir tão perdido, mais ou menos como um filho que bem mais tarde sente aquela ânsia de regressar ao conforto dos braços daqueles que nunca o abandonaram, mas que por ele foram esquecidos, com a diferença de que você ainda era muito jovem e ainda se encontrava entre nós, apesar do muro que separava o seu mundo do nosso. O muro que supostamente o torna diferente de nós.
Olá, filho. Nós ainda estamos aqui.
Conhecemos quase todos os seus segredos, todos os seus sonhos e anseios. Dizem que coração de mãe não se engana. E também não pense no pai como um ser indiferente, alheio ao desespero silencioso de seu filho, pois sentia e sofria em silêncio. Planejamos você com todo o empenho e carinho de pais que sonhavam com a sua vinda, o grande evento de nossas vidas, mas não para vê-lo mais tarde afogando-se nas próprias lágrimas, um garotinho assustado e com medo da própria sombra, que desde muito cedo tem sentido a maturidade amarga e sombria dos adultos, acreditando que a vida não espera todo o tempo do mundo para ser cruel e miserável.
Pense no pai e na mãe como seus melhores amigos. É verdadeira a nossa satisfação em vê-lo em sua busca por amigos verdadeiros lá fora, confidentes de suas lágrimas secretas e de tudo o que nos conta apenas pela metade ou através de códigos indecifráveis, ditos em voz alta ou por escrito. Mas a gente gostaria de vê-lo buscar um pouco mais da amizade de teus pais. De onde estiver, filho, saiba que, mesmo não contando tudo o que gostaria de nos contar, você tem a nossa atenção, a nossa compreensão e todo o nosso apoio. Estamos com você. Gostaria de poder dizer que sempre estaremos por perto para ouvi-lo, mas temos a amarga compreensão de que isso é humanamente impossível. O tempo passa e um dia seremos poeira. Teus pais, teus amigos e todos os seus amores de vidro, frágeis e humanos. Humanos, frágeis e finitos como você.
Temos conhecimento de sua grande aflição. De sua preocupação com a condição de mortal que aflige a todos nós. Do medo em ter de ver essa mortalidade manifestando-se outras e outras vezes diante de seus olhos... até aquele momento em que nada mais pode ser visto ou sentido. Nada que mereça nosso temor e nossas lágrimas. Nem as suas. Mas não podemos falar por você, que é o único conhecedor das razões que o levam a se sentir afetado por mais esse fato da vida.
De qualquer modo, seus gritos foram ouvidos das profundezas do poço, e aos poucos você foi sendo trazido para fora da escuridão. Finalmente descobriu que o seu poço particular era apenas uma ilusão de sua mente inquieta, que tem sido domada pela intensidade de seus sonhos e desejos, assim como por aquele novo fôlego de vida que vem se acumulando desde o exato instante da morte do seu velho eu. E hoje, mesmo que o futuro seja obscuro e incerto, você tem acreditado nele.
Tudo isso a gente viu e tem visto.
Quase nada tem passado batido.
Temos assistido e participado do teu sucesso, muito maior do que o sucesso de uma carreira profissional ou de meras facilidades na vida, mas o sucesso de seu retorno do mundo dos mortos, o lugar em que sua mente esteve por muitos anos, mesmo quando esteve acordado e respirando. Por muito tempo esteve observando o lado de fora, e tem feito isso de longe, mas agora tem desejado mais e mais fazer as pazes com a humanidade e com você mesmo. É verdade que certos dias são feitos de altos e baixos, o que é natural em nossa condição de seres humanos, mas percebemos que isso tem melhorado aos poucos, conforme mais um novo dia é concedido e acrescentado na contagem de seus dias.
Hoje podemos não saber muito bem onde você ou sua mente estão... às vezes, quero dizer... mas sabemos que hoje você vive sob controle, pelo menos um pouquinho mais do que ontem. Não tem mais olhado tanto para aqueles dias sombrios como se eles significassem o começo do teu fim, mas tem aprendido com a experiência de tê-los vivenciado. E agora só me vem aquela agradável sensação de que nossa missão finalmente foi cumprida. Fizemos a nossa parte.
Filho, a nossa vontade é de te dizer muito mais. Nosso grande testamento. Mas essa carta ficou maior do que o esperado, algo entre frente e verso e um pouco mais. E como provavelmente deve ter percebido, meus olhos verteram lágrimas que borraram a tinta no papel, e se eu tiver de escrever um pouco mais, é bem possível que não consiga ler nem a metade. Sei que vai rir, mas não me importo de verdade com isso. Prefiro ouvir suas risadas a ter de ouvir os seus lamentos durante as longas madrugadas.
Encerro essa carta com algumas orientações.
Filho, tenha um pouco mais de paciência com a gente. Querendo ou não, mesmo com todas as diferenças, você não é assim tão distante e diferente de nós.
E por mais quieto, reservado e defensivo que o pai tenha sido desde sempre, tenha um pouco mais de paciência e compreensão. Tudo o que ele mais deseja na vida é ter um pouco de paz e sossego ao lado da família. E sendo o único membro vivo da casa de seus pais, ele agora só tem esposa e filho e precisa de carinho e atenção.
E eu sei o que você pensa a respeito de ser filho único. É bem possível que a sua vida tivesse sido um pouco diferente se a gente tivesse conseguido um irmão ou uma irmã que pudesse te fazer companhia, a quem pudesse servir de exemplo ou em quem pudesse se espelhar. Com irmãos, as atenções seriam divididas e você se veria um pouco mais livre daquela velha pressão em ter de arcar com todas as expectativas de teus pais, uma pressão afligida a si mesmo, considerando que sempre permitimos que fosse livre. Mas pense um pouco a respeito. Talvez você teria sido uma pessoa completamente diferente. Possivelmente teria se tornado somente mais um ser genérico, não sendo esse ser único e brilhante de quem tão bem ouvimos falar. E isso, sim, teria sido decepcionante. Gostamos de quando vemos as pessoas finalmente aprendendo a olhar por baixo de sua expressão carrancuda e de seus olhos tristonhos. Por baixo da máscara de homem mau que você tem usado para afastar todos aqueles homens que se orgulham de seus olhares superficiais.
Temos orgulho do homem que você se tornou, tão maravilhosamente humano e imperfeito.
Filho, por último, mas não menos importante... Gostaria que você soubesse que te amamos hoje, amanhã e sempre. E essa é a grande herança que reservamos especialmente para você.


Com amor e carinho,
Papai e Mamãe.

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