quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

32. Estrela Cadente


Nascimento.
Nasce uma nova estrela.
Ela brilha um pouco mais quando perto das demais, sem mesmo entender o porquê.
Mas as estrelas anciãs não a invejam. Seus dias de glória há muito se foram, e isto é um fato, mas aquelas que antes brilharam nunca perderam de uma só vez o brilho por elas cultivado.
E com a tradição de seus ensinamentos ancestrais elas guiam o rumo da Pequenina.
Daquela estrela que brilha mais.
Mas a Pequenina, sedenta de conhecimento e faminta de sabedoria, em sua curiosidade juvenil queria saber o que além delas havia.
Para além de suas meras vidas.
Então as outras a proíbem de voar para fora da constelação.
Lá fora, para bem longe de toda aquela proteção, ela não somente perderia sua vida, mas também todo o seu brilho. Pequenina seria alvo fácil da ira, do declínio, além da mais profunda e obscura solidão. Desolação.
Mas quando percebe nas outras um breve momento de distração, ela aproveita e foge para bem, bem longe daquela pequena e ridícula constelação sem nome. E, não! As outras estrelas nem mesmo caem, ainda que na falta de seu brilho, elas certamente se apagarão.
Ela voa em liberdade, e nada mais parece acontecer.
As estrelas anciãs não se preocupam com ela de verdade, mas não querem o seu majestoso brilho perder. Tudo o que ela pensa é que querem privá-la da liberdade ao contarem um monte de mentiras, mas mal sabe ela que o seu ato de desobediência logo mais irá aprisioná-la em sucessivas armadilhas.



Dois anjos com redes de caçar borboletas se aproximam de Pequenina.
E a beleza presente na face dos anjos é anulada e deformada pela mais profunda ira.
Pequenina deve ir com eles, de volta para o lugar abandonado na constelação.
Não, ela diz que não. Ela não vai voltar, não.
Ela diz ter pensado que ninguém a observaria em seu desejo de voar um pouco mais longe.
Os anjos abandonam a ira por um momento, e por um momento eles riem. Essa petulante estrelinha quer até mesmo ser como um humano descobrindo novos horizontes!
Isso é ridículo e não faz sentido! Porque estrelas não têm voz e muito menos pensam! Tudo o que uma estrela pode fazer é brilhar. Estrelas não pensam, nem devem mesmo falar!
Mas, principalmente, acima dos anjos estrela nenhuma pode triunfar.
Com as redes, os anjos tentam capturar a estrelinha fugitiva. Mas Pequenina é ágil e esperta, e para fora do alcance das redes ela consegue deslizar. E para os anjos, Pequenina não é uma estrelinha ingênua, nem mesmo inofensiva. E mesmo com várias tentativas em capturá-la, Pequenina consegue escapar.
Risadas.
Gargalhadas.
Brilho.
Triunfo.
Os anjos, quando querem, à vontade podem rir. Mas quando o riso é dos outros, não, pelos anjos ele nunca é aceito. Sob a ira dos anjos, essa estrelinha brilhante e petulante irá cair!
Queda.
Pequenina é violentamente lançada à Terra.
Ela cai diretamente no mar.
E nas profundezas das águas, ela não é mais especial, mas apenas uma estrela-do-mar comum. Seu brilho para sempre se foi, quase como se nunca tivesse existido brilho algum.
Então as ondas, no passar dos dias e das noites, trazem a mais nova estrela-do-mar à beira de uma praia que era um misto de rochosa e arenosa.
E ainda que seu brilho não mais exista, ainda assim ela é a estrela mais bonita quando perto das demais, mesmo continuando a não entender o porquê.
Mas sem brilho não há mais vontades, nem mesmo há mais rimas.



Sua vida tornou-se desconexa e sem rumo em meio às ondas do mar, num vai e vem aparentemente sem fim.
De volta às profundezas das águas.
De volta à areia e às rochas da praia.
De novo e mais uma vez.
Mas será nas mãos pálidas de um menino que o rumo da pequena estrela será traçado, nas linhas e traços daquelas palmas banhadas pela espuma de sal.
Enquanto caminha na beira do mar de mãos dadas com o pai, em algum momento o menino sente que algo áspero se encontra no espaço entre seu pé e aquele solo invariavelmente molhado.
Os olhos de vidro do menino logo encontram aquela estrela-marinha, que apesar de áspera, não foge à sua infantil atenção. Ele a pega em suas mãos espalmadas e a ergue na direção do sol como se fosse um troféu.
O pai, então, diz que é hora de devolvê-la ao mar. É o lugar onde ela pertence, ele afirma, mas em sua inocência o menino sente que seria um desperdício ver algo assim tão bonito ir embora.
Ele a esconde no bolso de sua bermuda em um momento de distração do pai. Mal sabe ele que o seu ato de desobediência destruiria o que alguma vez houve de mais belo no mundo!
Já em casa, o menino quer guardar a estrela em uma caixa preta forrada com veludo vermelho. Era a caixa favorita de sua mãe, onde ela costumava guardar seus brincos e anéis, mas que hoje nada é além de uma caixa vazia.
Como que colocada em um altar, a estrela é observada de perto pelo menino, que mal consegue ter os olhos desviados de seu objeto de adoração. Tudo o que ele necessita é ter aquela beleza diante de si para vê-la sempre, sem que fosse preciso dividir isso com os outros.
Então o pai o chama e interrompe a hipnose.
Ele diz ao filho que se ainda quisesse ir à loja em tempo de comprarem aquele brinquedo novo que ele tanto havia pedido, eles deveriam se apressar.
O menino não pensa duas vezes e fecha a caixa com a tampa.
O menino corre para fora do quarto. Corre a fim de chegar em tempo para o seu mais novo objeto de atenção.
E a estrela fica presa no interior da caixa.
Outra vez abandonada pela luz.
No escuro, o brilho já inexistente em Pequenina se intensifica ainda mais com o passar dos dias.
Sendo esquecida por tudo e por todos, a desidratada Pequenina se vai para sempre, como todo o resto. Sem nunca entender o porquê.



De sua janela, outro menino olha para a bela imensidão estrelada de um céu noturno.
Sonhador, ele vê os incontáveis pontos luminosos que nunca perderam e nem perderiam o brilho, apesar de tudo, e apesar de já terem brilhado muito mais. Fascinado, quer saber como não se desgrudam do céu e simplesmente caem, sendo tão diferentes das estrelas coladas em papel colorido, com pontas que se soltam conforme vão envelhecendo.
Tenta imaginar como é ser uma estrela, viver no alto e brilhar o bastante para que todos possam ver o seu brilho daqui da Terra por muito, muito tempo.
Sem demora, começa a nutrir o desejo de experimentar uma glória semelhante à das estrelas. De ser uma delas. Em seus sonhos infantis, o menino quer ir além de tudo o que há ao alcance dos olhos humanos.
Sonha alto e de olhos abertos.
E ele não se vê despencando do céu.
Neste momento, um ponto luminoso, até então separado dos outros sabe-se lá há quanto tempo, despenca do céu sem avisar. Seu brilho forma um rastro de luz atrás de si, como a cauda de um cometa, e tal visão faz o menino ser tomado de surpresa.
Pequenina, a pequena estrela fugaz, provoca fascínio com a visão de sua queda.
Como nas histórias que o menino ouviu, a estrela cadente atravessa o céu e se destaca entre as demais estrelas antes de sumir de vista.
De acordo com sua visão infantil de mundo, o fascinado menino sorri e tenta imaginar tudo o que a vida teria a oferecer, tudo o que poderia conquistar. Sonha e alarga o sorriso.
E como acontece nas histórias, ele fecha os olhos e faz um pedido à estrela.


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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Fora da Caixa #1

Bom dia. Boa tarde. Boa noite.

Novidade! Bem vindos à nova seção do blog: o Fora da Caixa.

Neste espaço eu divulgarei textos e demais materiais de minha autoria que tenho publicado em outros websites/espaços.

Hoje eu trago os meus primeiros cinco artigos publicados no PORTAL DE FORMAÇÃO E AUTODESENVOLVIMENTO:

Sobre se sentir um estrangeiro neste mundo;

A tecnologia tem proporcionado uma maior interação entre pessoas de lugares e culturas diferentes, mas...
Uma reflexão necessária;

tem proporcionado uma maior interação entre pessoas de lugares e culturas diferentes.

tem proporcionado uma maior interação entre pessoas de lugares e culturas diferentes.

E aí, você conhece a si mesmo?
Outra reflexão necessária;

Sobre perguntarmos o porquê de certas coisas sem vigiarmos nossos próprios atos;

Até que ponto tudo o que você viveu foi fruto de suas próprias escolhas?
Até que ponto sua vida inteira foi escolhida e feita sob medida para você?

Como sempre peço, leia, e, se possível, avalie e comente no respectivo site [em que o texto foi publicado] ou mesmo compartilhe/divulgue. Grato!


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terça-feira, 10 de novembro de 2015

30. Imortalidade


Que a verdade seja logo dita: é tudo tão solitário aqui em cima!
Do alto da Montanha da Solidão, vejo rostos angustiados voltados para o céu, além de incontáveis pares de olhos que tentam enxergar o pico coberto pelas nuvens, um gesto fútil que vem sendo praticado e difundido desde os tempos mais remotos.
Roupas e comportamentos foram substituídos ao longo da História; muitos costumes se perderam, civilizações desapareceram e culturas morreram nos últimos milênios; gigantes legítimos foram extintos, mas a prepotência dos homens nunca foi abandonada, apesar de estarem revestidos de mortalidade e da diminuição relevante de suas estaturas.
E mesmo assim, a tradição de incessantemente olharem em minha direção permaneceu imutável, um patrimônio intacto da humanidade.
Tenho um repertório muito vasto de histórias fascinantes para contar. Entre as aventuras de camponeses pacatos e os dramas intimistas de doutores e homens da lei, os próprios personagens contam essas histórias ao vivenciá-las, sem haver a necessidade de um narrador onisciente, de uma voz sem rosto que traduza em palavras as desventuras e os sentimentos experimentados por eles.
Ora, sou tão somente o fio condutor de tais histórias.
Ninguém em sã consciência sonharia em receber o beijo frio de minha opositora. Ninguém em perfeito estado de espírito correria para os braços abertos da Morte. Nenhum ser consideravelmente deslumbrado quer vê-la depois de ter vivido e suado em profusão na tentativa de erguer um castelo de cartas majestoso.
Por outro lado, os mortais olham para o alto e esperam encontrar o meu olhar de volta.
Muito antes da criação de fórmulas milagrosas modernas, os alquimistas da Antiguidade já devotavam parte de suas vidas na busca pelo elixir que permitiria o prolongamento de suas experiências carnais.
Verdade seja dita: ninguém emocionalmente saudável quer morrer tão cedo!
Se hoje temos os programas intensivos de exercícios físicos e a implementação de hábitos saudáveis, tornando possível ao ser humano não acidentado morrer com um aspecto muito mais agradável, antigamente o homem mortal procurava por fontes mágicas de águas rejuvenescedoras.
Tudo para que a linha da Vida não mais se apagasse, para que as previsões ou interpretações de ciganos e demais adivinhadores se provassem falsas, meros atrativos para os supersticiosos desesperados.
Procuravam na magia um meio de combaterem uma suposta superstição.
Ninguém quer morrer tão cedo, mas morrem antes de se cumprirem as promessas acumuladas de todos os anos. E alguns até morrem muito antes de surgirem as primeiras rugas de preocupação.
E o meu rosto nunca foi visto.
Ou talvez não tenha sido bem assim.
Quero dizer, poucos foram aqueles que não apenas conseguiram enxergar o topo da Montanha da Solidão como também conquistaram um lugar ao meu lado à mesa nos banquetes eternos promovidos pelas entidades maiores; pelo menos é o que as pessoas lá embaixo contam umas às outras.
De tempos em tempos, a humanidade tem tentado mapear o caminho até mim. Filósofos, religiosos e artistas sempre ansiaram romper com as barreiras de suas respectivas mortalidades por meio de suas limitadas capacidades, e por meio de suas respectivas visões acerca da Vida e da Morte. E olham para o topo da montanha carregando o mesmo brilho presente nos olhos daqueles que sonhavam com a Terra Prometida.
O artista almeja viver para sempre, mesmo que por meio de suas obras. Verdade seja dita: ninguém quer ser esquecido! A alma de um artista grita por reconhecer a própria finitude, e o artista tenta fazer o grito reverberar através dos séculos, eternizando sua alma ao aprisioná-la nas próprias obras.
O filósofo, assim como o religioso, pergunta a si mesmo se é possível viver para sempre.
Olham para cima e esperam uma resposta.
Contemplam um mistério.
Recebem o meu silêncio.
Às vezes também me pergunto se existirei para sempre, apesar do meu nome e de minha natureza infinita. É tudo tão solitário aqui em cima. E ter de esperar toda a eternidade até que as pessoas lá embaixo venham até mim faz eu querer ser igual. Igualmente mortal.


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terça-feira, 18 de agosto de 2015

29. O Último Beijo


Shhh...
Não tenha medo.
Prazer em conhecê-lo.
Não quero que pense em mim como uma inimiga, mas como uma velha amiga que o esperava com lágrimas nos olhos (se eu soubesse como é chorar) e que o amava desde muito antes de seu nascimento. Confie em mim e segure a minha mão quando eu vier. Não tenha medo; nosso encontro será inevitável. Não é necessário me procurar na tentativa de chegar adiantado, pois eu ainda virei buscá-lo. O que fizer por sua conta antes disso não será mais de minha responsabilidade.
É verdade, ainda não fomos formalmente apresentados, mas eu não sou exatamente uma completa estranha de quem possa fugir e se esconder para sempre. Meu rosto pode ainda não ter sido revelado aos seus olhos, mantendo-se, até então, invisível sob um capuz intimidador, mas certamente conheceu quem tenha me visto e depois sentido o toque gentil de meus lábios na pele.
Sou amiga de todos os seres viventes: dos grandes e também dos pequenos, dos bípedes intelectualizados e dos seres rastejantes. Sou amiga de todos e os amo de uma maneira especial. Eu cuido de todos eles com um carinho muitas vezes ausente entre seus iguais.
É verdade, nem sempre as circunstâncias que antecedem a um encontro são as mais lisonjeiras ou favoráveis à minha fama, e isso apenas confirma a injustiça muitas vezes presente nas ações da Vida. Eu apenas espero pelo momento certo de aparecer e revelar meu rosto, geralmente alguns momentos de agonia antes de se fecharem os olhos de quem você ama ou amou ou de quem odeia ou odiou. Ou de quem havia nutrido o mais absoluto desprezo.
Eu os seguro pela mão, e, com um toque gentil de meus lábios na testa, caem em um sono profundo. Em seus sonhos, há quem diga, eles voam comigo acima das montanhas e em direção às nuvens e além, ainda segurando minha mão e ouvindo o bater de minhas asas. Há quem diga que os sonhos de alguns logo se transformam em pesadelos, quando insidiosamente os levo acima da montanha mais alta e depois os solto sem aviso, e silenciosamente observo sua longa queda até serem engolidos pelo abismo. Muitos seres humanos acreditam que seja assim.
Ninguém sabe muito bem o que acontece depois.
Os remanescentes apenas tentam imaginar como essa história poderia continuar após esse ponto, fazendo de mim um mistério ou uma lenda, pois sabem muito bem que de algum modo estou envolvida nisso tudo, no sono profundo e na nova realidade em que seus entes queridos ou inimigos não mais acordam; existe a negação inicial, depois o choro de tristeza ou de alegria, além da histeria, mas os belos adormecidos não mais abrirão os olhos. Eles não sabem que algum dia estiveram acordados. Nada mais sabem.
Os belos e os feios, os ricos e os pobres, os sábios e os tolos, os que curam e os que fazem outros dormirem: todos eles dormirão profundamente. Todos, sem exceção.
Os remanescentes não conseguem ver meu rosto, nem ouvem qualquer palavra dita ou qualquer diálogo travado entre mim e aqueles que ainda resistem a serem libertados de sua dor com um beijo, enquanto tento convencê-los de que o meu feitiço é muito mais gentil e suave que aquele lançado pela Vida: o de sentirem, na pele e na alma, tudo o que é possível sentir; mesmo aqueles que eventualmente flertam comigo resistem ao meu charme e se contorcem quando me veem, negando para si uma entrega completa ao meu beijo e aos meus carinhos de amiga. Para os remanescentes que os amaram restam somente as lembranças e as lágrimas e a maldição de ficarem acordados e sentindo as dores da continuidade. Para eles, eu sou um tabu.
Perdoe-me, mas existo. De qualquer modo, eu seguro a mão de quem fala de mim e também de quem não fala; não faz diferença.
Sou um tabu que eles (e você) quebram lentamente, mas muito lentamente. Conforme avançam em idade e experiência, as pessoas se acostumam com a ideia de dormirem por muito, mas muito tempo. Tornam-se serenos com a ideia de não terem mais a necessidade de dormir e acordar para um novo dia de dores e experiências tediosas ou emoções negativas afligidas por quem se encontra acima deles em alguma hierarquia; e mesmo esses homens no topo estão abaixo de mim. No Grande Esquema das Coisas, mesmo eles são relegados à posição vulgar de comentaristas de meus feitos, debatem a respeito de como eu seria e de como o mundo seria depois de terem ido dormir, deixando tudo para trás.
São inúmeros os rumores a meu respeito.
Dizem que sou uma entidade tangível, personificada e com personalidade própria, inteligente, e não somente um mero conceito abstrato ou uma simples força invisível. Há quem possa sugerir que eu poderia ser mais uma entidade tipicamente lovecraftiana*: superior aos homens e ao seu intelecto, um horror cósmico com o poder de conduzi-los à loucura, e que por isso mesmo me faço invisível ou intangível, tornando o homem resignado ao seu estado frágil de ser inferior, tornando-o incapaz de olhar-me nos olhos sem gritar histericamente. Os rumores também dizem que sou uma ave de rapina de olhos negros que se transforma numa velha ou em uma caveira com olhos vermelhos afundados nas órbitas e um sorriso perverso em sua face descarnada, ou que sou apenas uma meretriz de capa e capuz a seduzir os desesperados, com a diferença de que são beijados com amor e não golpeados com uma foice.
Aos recatados e aos pervertidos, um aviso: eu os terei sob o meu domínio.
Fica a seu critério acreditar ou não em mim ou em minhas palavras, mas isso não muda o fato de que eu também derrubo gigantes e guardo os seres microscópicos em meu bolso.
Mesmo você deve ter me visto parcialmente em diversas ocasiões: vivo com meu rosto escondido nas sombras, exceto nas noites de perigo e de tempestade, quando tenho o meu rosto temporariamente revelado pelo clarão de muitos relâmpagos que prenunciam os acessos de fúria da reverberante Voz do Trovão. Quando pensa estar em perigo, por um breve momento você tem a impressão de me ver. Mas ainda não é chegada a hora de me revelar.
Há também quem me procure de tempos em tempos, cortejando-me, vendo em mim uma grande promessa. Ou uma musa a quem atribuem uma fonte inesgotável de inspiração: e muitas vezes eu me vi na companhia de palavras no papel, ou entre rabiscos e paisagens de tinta, ou flutuando entre as ondas sonoras, o que faz de mim uma tendência. Para começar, eu sou o principal motivo pelo qual as pessoas vivem sempre tão ansiosas. Elas querem fazer de tudo um pouco antes de me verem.
Tenho observado a longevidade de uma tradição milenar que diz que você tem de correr para “ser alguém na vida”, seja lá o que isso signifique, e, para isso, deve competir e fazer tudo o que for possível para ser um dos escolhidos. E bem sabemos do que as pessoas são capazes.
No vale em que caminha a humanidade, o joio e o trigo murcharão e ficarão secos com a passagem de minha sombra. Seguem em linha reta, esses homens e mulheres, e veem o meu rastro nas duas direções, sabendo que, em breve, eu os encontrarei. Cedo ou tarde, eu os terei em meus braços, pouco importando o que tenham feito antes de mim.
Os bons e os maus, os justos e os injustos, os opressores e os oprimidos: todos se apagarão como velas deixadas ao vento. Pois levo a todos, sem preconceito ou julgamentos.
É verdade, você ouviu a meu respeito desde o início ou desde o momento em que tomou consciência de que quase tudo é efêmero, e de minha existência não aplaudida e de meus mistérios, mas simplesmente me nega ou finge que não existo, como se isso fosse facilitar as coisas.
Lembre-se de que somos amigos, você e eu.
Pareço impiedosa aos seus olhos, mas sou aquela que faz sua vida ter sentido. Ouso dizer que você quer viver justamente por minha causa, sabendo que, algum dia, não mais terá as regalias de antes quando finalmente estiver ao meu lado. Mas veja pelo lado bom: não mais terá refeições indigestas ao lado de sabotadores, bajuladores e hipócritas, nem mais terá de ouvir os eternos questionamentos a respeito de tantas expectativas não cumpridas.
Sendo eu mais nova que a Existência de Tudo, ainda sou uma anciã no Grande Esquema das Coisas, enquanto todos vocês são pequenos grãos de areia acumulados e perdidos no meio do tempo. Estou velha demais para ter de ouvir suas sagradas reclamações a meu respeito, quando tenho uma função muito específica a cumprir: equilibrar o caos no universo. Quero que saiba disso: minha missão é muito nobre, verdadeiramente nobre, por mais que eu não salve vidas.
Para começar, eu sou a única garantia verdadeira de algum pagamento para suas ações, mesmo que não tenha feito algo de muito relevante ou de muito hediondo em vida. Pois antes mesmo de ter nascido, você já havia herdado de seus pais sua condição de criatura efêmera; aliás, todos foram prometidos para mim sem existir a necessidade de um contrato assinado entre as partes envolvidas. Tenho viajado através das eras para poder encontrá-lo na hora previamente marcada, mas não divulgada. Não cabe a você saber ou querer decidir o momento, por maior e mais forte que seja a sua obsessão em querer estar no controle de tudo.
Eu mesma sou a obsessão de muitos e o maior medo de todos; mesmo quem me procura tenta sempre resistir ao meu toque frio, porém gentil, naqueles breves momentos que antecedem seu mergulho na escuridão mais profunda.
Permita-me, então, cumprir com a minha missão e equilibrar o universo, mantendo a ordem no Grande Esquema. Viva para aprender o que realmente importa.
Sou diferente de vocês, e nada mais tenho a aprender. Eu sei muito bem de onde vim, quem sou e para onde vou. Mas tenho comigo vários conselhos e ensinamentos para compartilhar com todos os seres humanos até a consumação dos séculos. Contudo, não nos resta muito mais tempo.
Posso ser uma abominação aos olhos alheios, que me veem como um atentado contra a natureza; mas saiba que outras vidas são admitidas neste mundo por causa de minha nobre intromissão na vida daqueles que anteriormente ocuparam a Terra com seus corpos e com suas respectivas experiências. Caso ainda não tenha percebido, sou uma agente de renovação do ciclo da Vida. Permito que todos tenham o seu devido espaço no mundo no pouco tempo que possuem em mãos, que tentem fazer o melhor antes de o tempo acabar, e que cumpram suas respectivas missões antes de serem substituídos. Uma vida pela outra, e o mundo continua girando.
E os rumores ainda dizem que sua vida toda passa diante de seus olhos quando você se encontra mais perto do fim, tal como um filme muito longo que relembra momentos bons e ruins, alegrias e tristezas, conquistas, perdas e abandonos. Ninguém conheceu pessoalmente quem tenha voltado para contar história, mas as pessoas dizem muitas coisas a meu respeito; tentam compreender algo que vai muito além da compreensão de seus espíritos limitados, e levam uma vida inteira para isso.
Se me permite um último conselho, nunca diga “nunca me abandone.” Nunca acredite piamente em promessas sinceras de outros meros mortais, seus semelhantes. No fim, todos serão abandonados. Todos irão e ficarão sozinhos. Quem amou ou foi amado... no fim será abandonado por quem menos esperava. E mais: pedir um último beijo não diminui a dor de caminhos separados. Pois o último beijo sempre me pertence.
Espero que adivinhe o meu nome.



*Das obras de H. P. Lovecraft (1890 – 1937), escritor estadunidense.


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