domingo, 8 de fevereiro de 2015

22. Testemunha Ocular



Registro dos últimos acontecimentos, de muito do que temos visto.
Minhas cordiais saudações às futuras gerações, que provavelmente lerão a isto com o pensamento de que leem notícias muito velhas. Fato: nada nesta carta é uma novidade, mas nos dias que se seguem – os meus dias –, todos esses acontecimentos recebem uma consideração maior devido às suas implicações.
É possível que vocês tenham superado a tudo isso, como também é possível que tenham se afundado em um poço muito fundo de consequências devastadoras. Vou mais além: é bem possível que não tenha sobrado um único leitor no futuro.
Ainda não sabemos como tudo isso termina.
Mas deixo esse registro como um aviso a respeito tudo o que terão herdado de nós, das pessoas do passado, de seus ascendentes insensatos. Talvez, eu não sei, isso seja mais uma tentativa desesperada de inspirar mudanças a serem operadas por aqueles que ainda hão de vir em um futuro não tão distante.
Quero que saibam que, com isso, eu tentei fazer a minha parte.
Nem tudo isso eu vi somente pela visão das lentes, mas algumas destas coisas eu também vi com meus próprios olhos. E uma parte de tudo isso eu senti com meus demais sentidos.
Tenho vivido um dos séculos mais impactantes de toda a História.
Fomos agraciados ou golpeados diariamente por incontáveis informações, e testemunhamos o surgimento de algumas das lentas transformações há muito esperadas; mas talvez, ainda não sei, eu não tenha visto a conclusão de tais transformações por causa dos defensores remanescentes das velhas causas perdidas. O ódio, o medo e a corrupção humana obscureceram o coração de muitos e assombraram o espírito de todos, e assim o mundo se viu mendigando paz.
A violência cresceu e se espalhou como uma doença epidêmica, muito depressa, e não por falta de aviso; mas ela tem sido precariamente remediada, e não mais prevenida, mesmo com todos os recursos dos quais alguns de nós orgulham-se de ter em mãos.
Pessoas se empurram e se pisoteiam como que em estouros de boiada, e ainda matam umas às outras com palavras embebidas em veneno; todos os dias, longas batalhas são travadas nos cenários mais ordinários. Diga-me, então, qual teria sido o grande motivo para tamanha loucura? Eu diria que foi aquela velha e eterna ambição desesperada de garantir um pequeno espaço individual, seu ou meu, aqui nesta Terra. Uma pequena fatia de nada.
Mesmo as crianças têm provado do veneno da violência, e sorriem muito satisfeitas quando sentem o envenenamento de suas almas e os efeitos de sua corrupção. Se anteriormente selamos a promessa de protegê-las de qualquer perigo que viesse de fora, (e, consequentemente, daqueles perigos internos que porventura ignoramos e até negligenciamos) hoje, por outro lado, temos trancado nossas portas internas à chave ou com dois ou mais cadeados: uma pequena medida de segurança contra as nossas próprias crianças.
E nos dias que se seguem, palavras doces e agradecimentos, ameaças de morte e insultos dividem a escuridão das mesmas bocas que alimentamos. Tememos o dia de nossa extinção pelas mãos daqueles que um dia ajudamos a atravessar uma avenida movimentada.
Sim, é verdade, mais uma profecia se cumpriu, e o amor...
O amor se esfriou.
O amor reprodutivo, no entanto, esse tem se multiplicado como pedido e não tem falhado tanto, ainda que por acidente; ora, temos muita informação em mãos, é bem verdade, mas o discernimento não é o dom de muitos; e então tem sido muito mais simples condenar o amor autêntico e maior de tantos outros e povoar ainda mais esse mundo por conveniência do que se responsabilizar e prover o que for necessário para a criação desses filhos.
Esses filhos são vigiados de perto e estão bem seguros, e não incomodam mais: eles ficam em silêncio e são educados pelas maravilhas da modernidade, e conhecem a respeito de verdades ou ilusões em suas longas viagens por um mundo virtual muito mais vasto que o natural e, ainda assim, prodigiosamente instalado em aparelhos que cabem na palma da mão. Babás, essas não são mais necessárias.
E os mais experientes não são mais os portadores do conhecimento; hoje, os mais jovens ensinam aos mais velhos. Para o bem ou para o mal.
Tudo mudou.
E o mundo tem girado muito mais depressa e em muito pouco tempo.
Somos aquela geração de idiotas profetizada por Einstein. E vocês, nossos descendentes incautos... vocês serão, possivelmente, a evolução disso.
Eu espero que não.
Pessoalmente, nunca vi muita justiça naquele conceito de hereditariedade em que os erros e acertos são automaticamente transmitidos de uma geração para a outra, mas as coisas parecem ser desta maneira. E logo saberão que, se nada for feito a respeito, a tendência no futuro é de que o mundo será habitado somente pelos descerebrados, sem alma e sem rumo.
E talvez sem volta.
Ninguém mais quer se parecer ou agir como os antigos sonhadores.
Nos dias que se seguem, ninguém mais olha para o céu à procura de figuras nas nuvens, mas nos curvamos para os nossos novos deuses substituíveis – os deuses tecnológicos – e temos nos conectado unicamente com eles e com o nosso ego inflado. Não nos lembramos mais do rosto de nossos pais, de nossos filhos e amigos.
Pressionando um único botão, um único homem tem a ilusão de ter o poder de fazer o mesmo trabalho de dezenas ou centenas de pessoas; mas esse mesmo homem sabe que pode vir a ser dispensável no futuro.
Logo me vem a imagem de um futuro em que os filhos bastardos da Terra irão vagar por ela à procura de algo que ainda necessite unicamente de toques humanos, e não terão êxito na missão; há muito se esqueceram das coisas realmente importantes, ficaram cegos e se desencontraram.
“Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.”*
E uma grande parcela da humanidade se esvaziou de amor e de propósito.
E desumanizou-se.
E a Terra não aguenta mais parir e ter de carregar um número exorbitante de filhos vazios, mas não menos pesados, em cima de seus ombros dolorosamente deslocados; e vive exaurida de tanto amamentar com um seio quase vazio, e muito ferido e infeccionado, enquanto outros tantos filhos ainda continuam famintos e vivem chorando em silêncio. Talvez não morramos de sede, mas bebemos de nossas próprias lágrimas.
Mas nem tudo são trevas ou nuvens escuras: o sol continua a sorrir como sempre, calorosamente; e mais: ele tem brilhado por muito mais tempo, emanando do alto uma radiante radiação, e vive sorrindo com indiferença para tudo o que tem acontecido aqui embaixo.
Temos corrido contra o tempo e corrido de nós mesmos.
E dos outros.
Vivemos a era do individualismo e do vício em nós mesmos, por mais que corramos e fujamos; como se sofrêssemos de uma síndrome de Estocolmo em que somos vítimas e algozes de nós mesmos, e ainda assim nos procuramos em dependência.
Vivemos a era da razão e da total ausência de imaginação.
Vivemos a era do cinismo.
Nos dias que se seguem, muito se fala sobre falso moralismo, de modo que ninguém mais sabe apontar qual teria sido o verdadeiro. E nos dias que se seguem, as pessoas querem fazer valer o seu direito de terem uma opinião, mesmo sobre coisas das quais não entendem ou que em nada afetam suas vidas.
Vivemos uma era de contradições.
Vivemos uma era de fartura e de excessos.
Mas tem sobrado de um lado e faltado do outro.
Tem faltado amor.
Tem faltado bom senso.
Tem faltado reflexão antes da ação.
Tem faltado ação depois da reflexão.
Tem faltado o grito que quebre os espelhos que refletem rostos apáticos.
Tem faltado alma viva.
Tem faltado um surto de consciência.
Tem faltado mais atitude após o grito de guerra.
Tem faltado um bom rock and roll.
E muito mais.
Eu poderia falar de muito, muito mais, mas todas essas coisas não caberiam no papel.
Nos dias que se seguem, em nada mais acreditamos, nem mesmo na esperança de que as coisas podem ser diferentes. Séculos e séculos desapareceram nas areias do tempo, mas as velhas histórias ainda se repetem. Mesmo a minha história é uma repetição de tantas outras, e mesmo a minha geração já havia sido alertada para o que viria logo depois – o mesmo que estou fazendo agora, mas por vocês que ainda nem sonharam em nascer. Meus votos sinceros de sobrevivência às futuras gerações, se ainda não conseguimos destruir tudo até a sua vinda.
E lembrem-se, meus filhos, e filhos dos meus filhos, do seguinte conselho: o livre-arbítrio ainda é um dos nossos grandes remediadores. Por favor, usem-no com sabedoria.
E que possamos quebrar a profecia!



*O Pregador, em Eclesiastes (capítulo 1, versículo 2.)


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