sexta-feira, 11 de março de 2016

33. Realidade


Continuação de Expectativas


De meu lugar próximo à janela do quarto, entre latidos frenéticos, fortes marretadas, marteladas, conversas entusiasmadas de homens que pouco conheço, e o ruído ensurdecedor da serra que apara o nosso gramado ainda úmido de orvalho, ouço também a voz do sossego que esta nova vida tem me prometido desde a sua concepção. Aqui, o barulho é exceção, e não mais uma tendência invasiva. Aqui, a música é deliciosamente assobiada por pássaros livres, alegres e harmoniosos, e não aquela cacofonia vomitada dia após dia por bocas humanas desprovidas de talento; certo, tudo bem, eu até sei que ainda teremos um pouco deste tormento às vezes, mas fora do cotidiano, principalmente naqueles poucos dias em que não nos importaremos tanto com tamanha intromissão.

Também de meu lugar próximo à janela, eu consigo ver o mundo verde ao redor. Os canários se aproximam, atraídos pelas árvores, assim como o curioso beija-flor não mais fica distante de nós, como outros teriam ficado anteriormente. Nesta nova realidade, as aves não são tão tímidas e nem tão assustadas.

E apesar do barulho matutino e da poeira do momento, enquanto a casa é lentamente organizada, tais visões – verdadeiros colírios para os olhos – valem a espera; isto é, se considerarmos que ainda teremos muito tempo para um bom desfrutamento de nossas mais doces expectativas, dos sonhos que estamos construindo.

Os mosquitos incomodam um pouco, é verdade, mas nos acostumamos depressa. Pouco a pouco, eles perdem o apetite por nosso sangue, igualmente acostumados com os novos habitantes da casa, não mais turistas. Também somos agraciados pela visão de vaga-lumes solitários à noite, e por alguns instantes esquecemos os mosquitos. O cheiro de terra molhada pela chuva, o ar um pouco mais puro, além de tão belas e atraentes visões... Tudo isso compensa os pequenos incômodos.

Então, meu amigo, o futuro ainda não é aquele das espreguiçadeiras na areia da praia, da contemplação do pôr do sol, do castelo desmanchado pela maré, mas o construímos pouco a pouco.

Mesmo eu, pouco habituado com ferramentas e parafusos, sendo eu um completo desparafusado... Mesmo eu tenho aprendido como manejar as ferramentas e tenho surpreendido meus familiares com o empenho em pôr as coisas em seus devidos lugares após longas semanas da desconstrução de nossa vida anterior. Estou sangrando e abrindo meus poros para o derramamento do suor sagrado de meus esforços, mas sorrio satisfeito conforme vejo nossa nova vida tomando forma, ainda que lentamente. Novas perspectivas à vista!

E quando a vontade vier, basta eu atravessar a passagem sob o viaduto e seguir em linha reta até o mar. É um tanto longo o caminho, mas vale a caminhada, apesar de o caminho no outro lado do viaduto não ser igualmente verde. O mar me massageia e me limpa com a intensidade moderada de suas ondas batendo em meu corpo.

Ainda nos banharemos no mar, meu amigo. Você e eu.

Você e eu, nós ainda desfrutaremos juntos tudo o que desfrutarei por aqui: o mar, o sossego, a quebra de rotina e tudo o mais. Será meu convidado de honra.

O futuro ainda não é aquele contado pelas minhas mais doces expectativas, mas serei otimista, pois sinto-me em movimento desde agora e talvez já me sentisse assim um pouco antes disso. Mesmo esta carta não cobrou de mim um esforço tão grande, como teria sido antes, de tão inspirado que eu me sinto, ainda que por hoje; eu não sei se assim será todos os dias, e é certo que não, pois sou humano e me aborreço às vezes. Sou naturalmente humano e nem sempre vivo com a cabeça tão erguida.

Mas como eu dizia, o futuro pode não ter chegado ainda, mas está sendo pacientemente construído e aguardado. O futuro, como dizem, é a soma de vários presentes. Devo me permitir saborear este presente enquanto construímos diligentemente o nosso futuro. Esta é a realidade que temos por ora, porém sinto que o futuro nos reserva boas e agradáveis surpresas.


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