O menino riu ao ver seu corpo todo espichado e a
cabeça gorda e gigante acima, o exato oposto da realidade, mas logo se assustou
com o riso macabro que seu reflexo deformado lhe devolveu.
Ele quase cuspiu a pasta branca de pipoca mastigada
e saliva. Mamãe, é claro, veio logo com a bronca, dizendo que ele iria
emporcalhar tudo; Julieta, sua irmã mais velha, ela pôde ser vista às suas
costas colocando a mão na boca e abafando as risadinhas que sempre o
incomodaram. Papai apenas se aproximou todo silencioso e distraído com os
reflexos.
Sua vida toda tem sido assim.
O menino prometeu ter cuidado e encheu a boca com
mais uma porção gorda de pipoca. Os outros se apressaram pelo labirinto de
espelhos e logo o deixaram para trás. Tudo bem, pois ele os alcançaria num
instante, mas antes precisaria reordenar seus pensamentos e se recompor. Suas
mãozinhas tremiam, assim como suas pernas, e ele não queria que os outros
notassem sua fraqueza.
Quando sentiu que poderia seguir em frente, ele se
viu num corredor ocupado apenas pela sua presença e pela presença de seus
muitos reflexos.
De todos os lados, seus muitos eus se aproximavam e
se afastavam, se esticavam e se encolhiam conforme ele caminhava: calmo no
início, divertindo-se com os reflexos, depois um pouco mais apressado, depois
um pouco mais alarmado e beirando ao desesperado.
Com o tempo, o menino simplesmente se esqueceu de
onde veio e aonde teria de ir. Sabia que ali havia uma entrada e uma saída, mas
não saberia mais dizer qual era qual.
Ainda assim, não choraria, apesar da lágrima grossa
que se formava e começava a pesar no canto do olho. Sua irmã não choraria, nem
seus coleguinhas sempre risonhos.
Parou para pensar um pouco. A lágrima, aquela
teimosa, não retrocedeu, mas também não caiu.
O que Julieta faria em seu lugar? O menino não tinha
nem ideia, mas logo descobriu o que ele faria.
Olhou para o saquinho de pipoca em suas mãos, ainda
pela metade, e resolveu fazer com os grãos o que João e Maria fizeram com os
pedacinhos de pão. Nenhum passarinho comeria seus rastros ali. Caso
ele se perdesse ainda mais pelo labirinto, pelo menos saberia como voltar até
aquele ponto. Alguém viria à sua procura, cedo ou tarde. Viria mesmo? Veria sua
família outra vez?
Seguiu por corredores e salas quadradas e
claustrofóbicas, por bifurcações, por reflexos e ilusões de todos os tipos, e
deixou atrás de si um rastro que não durou muito. Então era assim. Teria de
voltar e esperar até que alguém aparecesse.
Deu meia-volta e se deparou com algo inusitado: um
corvo negro, não se sabe como, havia invadido a casa de espelhos e estava
devorando o fim de sua trilha de pipoca. Se o menino fosse mais velho e
entendesse muito mais sobre algumas coisas, ele teria percebido a ironia da situação,
mas aquele não era o momento mais adequado para se perceber coisas ou até mesmo saber o que é ironia.
Espantou o corvo com as mãos, e a ave grasnou toda
indignada, afastando-se. A lágrima finalmente caiu, silenciosa, pelo rosto do
menino. Ele ficou cabisbaixo, e o choro que se seguiu foi silencioso e sofrido.
Um choro sentido.
Quando pensou que não teria mais o que chorar, o
menino, aos soluços, ergueu a cabeça e enxugou as lágrimas com os dedos
salgados. Então, através da nebulosidade parcial de sua visão ainda embaçada
pelas lágrimas, o menino viu algo diferente.
Havia um homem muito alto e muito velho parado a
poucos metros do menino, olhando para ele. O menino não hesitou e se aproximou
do velho, que também se aproximou dele. E parou ao notar ter estado diante de
um espelho.
Mais um dos truques da casa, ao que parecia.
O menino foi tomado de surpresa e depois de
curiosidade. O homem no reflexo tinha o rosto bem parecido com o de seu pai: os
olhos da mesma cor, o mesmo nariz, os mesmos lábios carnudos e até a mesma
calvície. Também tinha a mesma magreza, ainda que os braços fossem muito mais
fortes. Apesar das semelhanças, ele era muito mais velho que seu velho. Outro
detalhe que chamou a atenção do menino foi o saquinho cheio de pipoca que
aquelas mãos fortes e manchadas pela idade seguravam. Os mais velhos, ao que
parece, não sentem mais a necessidade marcar o próprio caminho. Parecem
conhecê-lo muito bem, assim parece.
O velho estava se comportando igual ao menino, na
mesma posição e com a mesma expressão de curiosidade e interesse no rosto.
Imitando-o até nos ombros encurvados.
O menino ainda segurava o saquinho de pipoca vazio e
levemente amassado. Então levou as duas mãos para o alto, o que o velho imitou
quase em perfeita sincronia. Deu um pulinho e o velho deu outro. O menino deu
um passo para a direita e outro para a esquerda, e o velho, no reflexo, deu um
passo para a esquerda e outro para a direita dele, quase ao mesmo tempo. O
menino soltou o saquinho de pipoca...
O velho não apenas não soltou o dele, como também
riu, mostrando dentes levemente apodrecidos e um brilho um tanto lunático nos
olhos injetados de sangue, aparentando ter se divertido com a brincadeira, mas
que ao menino bastou como motivo para começar a correr para bem longe.
O velho pediu para que ele não fugisse. Aquela voz
poderia ter soado um tanto musical em qualquer outra situação, mas, ali, soou
hedionda aos ouvidos do menino, que, apesar de não conseguir correr muito,
acelerou o máximo que pôde e, sem perceber, disparou pelo caminho de volta.
Hei, menino! Não fuja, por favor! Venha cá!
Isto foi sendo repetido ao longo da perseguição. O
velho corria tão veloz quanto o menino — ou seja, não corria tanto assim — e os
reflexos o acompanhavam de todas as direções das salas e corredores, como que
onipresentes, assim como aquela voz o seguia.
Não havia escapatória, um fato da vida que o menino
logo descobriu ao adentrar uma salinha bem apertada, com capacidade para
abrigar somente uma pessoa e meia. Por um momento pareceu ter deixado o velho
para trás, e ele ainda não tinha chegado ali; mas o menino sabia que era uma
questão de tempo.
Sentia-se cansado, apesar da adrenalina da fuga.
Então colocou a mão no peito, como a tia Katia havia ensinado, e sentiu o
coração disparado. Depois de sentir emoções fortes, como quando voltava do
recreio, ele sempre colocava a mão no peito para senti-lo bater forte.
Foi quando ouviu a voz chamar por seu nome.
A voz de um estranho, que teria soado doce e
professoral em outro lugar, mas, que ali, na casa de espelhos, soou
fantasmagórica, sabia seu nome e como pronunciá-lo corretamente, algo que nem
sua irmã sabia direito — e ela ria ao tentar, todos os dias, apenas pelo prazer
de chateá-lo pela terrível escolha de seus pais. O velho o chamava, em vez de
aparecer nos espelhos.
Ao sair para o corredor, o menino se deparou com o seu
perseguidor esperando por ele na outra extremidade. Ele também parecia cansado,
mas ainda sorria.
Venha cá, Nome Estranho e Impronunciável do Menino! Tenho que te dizer algumas
coisas.
O menino nada disse, mas não teve escolha e seguiu
em frente. O velho também se aproximou, mas não apareceu dos lados, nos outros
espelhos, como se não viesse de um reflexo. Como se, agora, ele fosse uma
presença carnal na casa dos espelhos.
Muito bem. Viu só? Eu não vim aqui para te machucar.
Está mais calmo?
O menino não teve escolha e, ainda em silêncio, acenou
positivamente com a cabeça, olhando para baixo.
Olhe para mim, nos meus olhos. Eu sei que sua mãe o
ensinou a nunca olhar para o rosto dos mais velhos quando fosse chamado. Sinal
de respeito, certo? Mas não precisa ser assim comigo. Eu gosto que me vejam. É
claro, quando me veem por bem. Mas a maioria me vê por bem agora, eu acho.
Isso, muito bem. Eu sou seu amigo, não precisa ter medo de mim.
Q-quem é o senhor?
Você, menino. Por favor, me chame de você. Eu não
sou tão velho assim, sou? Posso ter a carcaça de um velho, mas por dentro sou
tão cheio de vida quanto você.
Quem é você, então?
Sabe, eu já estive na mesma situação que você, aqui mesmo,
nesta casa de espelhos.
Você é um fantasma?
O velho riu.
Eu não diria isso. Mas, como eu ia dizendo, eu estive
no mesmo lugar que você. E passei minha vida toda acreditando que tudo não
havia passado de um sonho maluco. Mas nunca me esqueci do que vi e ouvi naquele
dia. Nunca mais voltei aqui. Bom, até hoje. Nem acreditei quando soube que isso
aqui ainda existia. São tantas lembranças de um tempo que não existe mais, mas
esse lugar continua exatamente o mesmo. Mas não é só sobre isso que eu quero
falar.
Então, o velho espalmou uma das mãos e despejou um
pouco de pipoca, levando tudo à boca e começando a mastigar lentamente. Disse
que até mesmo a pipoca continuava igualmente saborosa. Receita de família,
passada entre as gerações.
Toma, disse. Pode ficar.
O menino, mais tranquilo agora, pegou o saquinho das
mãos frias do velho, apesar de todas as orientações de sua mãe sobre não pegar
coisas oferecidas por estranhos. Comeu um pouco da pipoca, mas sentiu o sabor
muito mais vivo e temperado que da outra, como se a outra fosse insossa em
comparação. Havia, sim, alguma diferença ali. Sutil, talvez, mas perceptível. O
velho deve ter comprado de outro lugar.
Foi então que o velho tocou sua orelha com os lábios
secos e maltratados pelo tempo, e começou a sussurrar ao seu ouvido vários
conselhos e segredos sobre o passado, o presente e o futuro. O menino escutou a
tudo sem esboçar reação alguma, como que num estado de transe.
E, de algum lugar distante, outra voz começou a
chamar seu nome.
E a voz do velho dizia: tudo vai ficar bem.
E a outra voz, a voz de sua mãe, o chamava para fora
do transe.
Garoto... Você vem ou não vem? Decida-se logo. Eu já
perdi a paciência com isso aqui. Vamos sair por onde der.
Vem logo, fedelho!
Deu por si parado no corredor, olhando para o
saquinho de pipoca ainda pela metade em suas mãos, enquanto mastigava
distraidamente. Parecia ter adquirido um novo sabor, muito mais prazeroso. Diante
dele estava sua família, feita de pessoas imperfeitas e um tanto complicadas,
mas ele parecia feliz em vê-las outra vez. Abriu um largo sorriso cheio de
milho de pipoca.
Pai, aí está você! Fiquei preocupada.
Dá por si parado no corredor, olhando para suas mãos
vazias. Ainda pode sentir o gostinho da pasta branca e salgada de pipoca e
saliva, um sabor que o faz se lembrar de dias difíceis que anteciparam os
melhores anos de sua vida. Diante dele está sua família, feita de pessoas
imperfeitas; afinal, quem é perfeito neste mundo? E elas são tudo para ele.
Sua filha e sua neta o esperam na entrada ou na
saída do corredor. A filha levou o nome composto pelos nomes de sua mãe e da
mãe de sua falecida esposa, como uma forma de homenageá-las e de evitar maiores
conflitos. Já o nome da neta foi uma escolha do avô, uma honra dada por sua
filha e seu genro. Não pensou duas vezes quando a viu sorrir graciosamente, e
deu à menina o nome daquela que foi a sua melhor amiga na vida.
Você vem, vovô?
Ele sorri. E o sorriso se alarga quando vê o menino
parado no reflexo ao seu lado, primeiro atordoado, depois abrindo um sorriso
largo ao olhar na mesma direção em que ele iria seguir. Ele havia reencontrado
sua família e estava feliz com isso.
O velho volta seu olhar para a netinha.
Estou indo, Julieta, querida.
Conforme ele caminha na direção das duas, o menino
segue seus passos pelos espelhos de maneira quase sincronizada. Parece mais
confiante, não mais encurvando os ombros; ora, a idade fez o velho encurvar os
dele. Nas mãos do menino, um saquinho de pipoca ainda pela metade.
Ao se aproximar das duas, o velho é recebido
calorosamente por sua netinha, que sempre o abraça quando se reencontram.
Tudo ficou bem.
Finalizado em Itanhaém — SP, 16 Abril de 2018.
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