terça-feira, 15 de maio de 2018

55. Ruído Branco



Não, eu não tenho nenhum remédio comigo. Nem trouxe uma garrafa de vodca para dividir com meu amigo. Não tenho um único vintém perdido aqui no meu bolso. Nada tenho para me distrair dos pensamentos. Para disfarçar todo o meu desgosto de ter pagar pra ver a quem nem mesmo vê você. Ninguém mais conversa de graça, caminhando ao seu lado nas ruas ou sentado no banco da praça. Não me importo de vê-lo comer sozinho ou se nada tem a me oferecer; eu não vim aqui para encher minha barriga, vim para escutar e enxergar tudo sobre você. Quero saber o que puder sobre meu amigo. Peço perdão por não ter trazido nenhuma distração comigo.
Tragam suas máscaras lagrimejantes para a festa de debutante. Tragam seus filtros mágicos a melhorarem seus sorrisos de pessoas importantes. Façam suas poses espontâneas, suas poses especiais de pessoas iguais diante das lentes da câmera. Mostrem seu prato bonito de arroz e feijão gourmet para o mundo todo. Nós recompensaremos sua ostentação com cada um de nossos biscoitos. Mostrem seus músculos torneados e suas pernas finas. Diante do espelho, mais uma prova de superação. Provem a cada segundo que estão no controle de suas vidas. Neguem que estão em negação.
Clique em Editar. Que tal mexer aqui e retocar ali, moldando a realidade à sua vontade? Agora clique em Editar a Verdade. Mostre para o mundo as mentiras convenientes e brilhantes como seus dentes, brancos como todo esse ruído branco que ouve para abafar qualquer grito de socorro. Pelo menos estão te pagando bem para ser garoto-propaganda de perfeição para o mundo todo? Que tal deixarmos de falar de coisas negativas só por hoje? Que hoje ninguém pule da ponte!
Quando quero falar de sentimentos, minha cabeça parece feita de vento. Nunca encontro as melhores palavras, não tenho nenhum remédio ou tostão furado para acalmar meus pensamentos. Nenhuma distração me torna forte para levar o caos embora. O caos e as ideias dividem o mesmo espaço, enchendo minha cabeça e o papel de caraminholas.
Não leiam, nem vejam outras realidades e verdades. Não tenham tempo, nem receio de dizerem que os outros só trazem desgosto, que nada acrescentam ao seu bolso, ao seu tempo e investimento para serem os destaques do dia. Esvazie sua simpatia e ganhe um diploma de mestre em antipatia.
Nunca fale de seus problemas. Não enfrentamos todos nós uma arena de leões, gaviões, ratos e sapatos? Pisoteamos seu rosto no asfalto sobre o esgoto aonde vai do que somos todos feitos por dentro. Você não é um boneco feito de vento?
Tento me comunicar com meu amigo. Tentar olhar no olho é impossível. O olhar dele se perde no próprio umbigo. Precisarei trazer logo um espelho para me distrair comigo.
Tragam seus títulos, seus nomes, status, endereço fixo no primeiro encontro. É assim mesmo que funciona esse jogo.
Distraia-se e ignore tudo o que importa. Ouça o ruído branco do seu lado da porta. Mascare a indiferença com mais distrações convenientes, e não abra a porta para os impertinentes. Esses que ousam perturbar sua paz, assim como você também faz, quando abre a boca para falar aos outros de seus problemas. Quem quer mesmo saber de seus dilemas? Estamos todos ocupados, de olho em nossos próprios sapatos. Novos ou usados. Repetimos o mesmo círculo e ouvimos o ruído branco de novo, de novo e de novo. Somos muito mais importantes que o imenso elefante ignorado há tempos no meio da sala. E saiba que ainda vamos culpá-lo por não temos sabido de nada até ouvirmos seu nome se perder na quilométrica estrada, congestionada de ruídos abafados e vidros quebrados, espelhos rachados, e nas páginas dos jornais e redes sociais, entre nossas fotos de carnavais e viagens internacionais, entre receitas de bolo, jogos e maquiagens. Ficções maquiadas da realidade. Então faremos campanhas amarelas, lamentando que não tenha pintado nas paredes uma paisagem em aquarela, mas que de sangue amargo você as tingiu quando fugiu da realidade, e agora o vemos como só mais um covarde. Não, não, não. Nós nunca fugimos da realidade, apenas a maquiamos à nossa perfeita vontade. A mesma narrativa nós queremos contar, ninguém do contrário pode nos acusar. Ora, todos contam a mesma história; quem por aí poderá nos culpar?


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sexta-feira, 4 de maio de 2018

54. Quebra-Cabeça



Por onde podemos começar?
Onde fica o início, o meio e o fim?
Peças desarranjadas sobre a mesa, caídas no chão, escondidas sob o tapete. Um misto de falta de sentido e poeira. Brincadeira iniciada na infância, levando uma vida inteira.
Imagens cortadas, partes conectadas com o nada. Cão e gato alados, lembranças perdidas e outras desde sempre guardadas, o fragmento de um homem e a base de uma casa abandonada. Grande mistério. Enigma sem solução. Segurando a mão de pai e mãe, que não mais se encontram na multidão.
Mãos e pés, antes pequenos, agora grandes e maltratados pelo tempo. Os olhos cansados do homem não piscam, enquanto monta o jogo de sua vida, levando pouco mais de três quartos de um século.
Pessoas solitárias ao seu lado entraram e saíram de sua porta, deixando-lhe comida e bebida sem que ele se virasse para notá-las. Sua casca, antes tão bela e agora tão maltratada, sempre escondeu o abismo que ele sempre quis esconder. Tenta esquecer cada uma de suas mais infelizes falas, cada palavra que se esforçou para esquecer.
Na imagem ainda incompleta, lindos campos e coelhos brancos. Flores sem perfume; não há cheiro em suas velhas lembranças. Em meio ao verde desbotado dos velhos dias, o sangue amargo e invisível de suas antigas fantasias de vingança. Seus inimigos, que nem existem mais, nem mesmo souberam que algum dia eles haviam sido amigos.
Quem é este homem que monta um jogo que nunca jogou? De uma vida não vivida? Quem é este homem amargurado que desejou que o mundo o recompensasse com flores, amores ou com muita bebida?
Não se sabe onde fica o começo, nem de onde nasceram seus mais primais anseios de homem moderno, todo o seu medo de ser um homem sem medo. Toda a sua vontade de ser um homem sério.
Ele nasceu sem nascer, sempre existiu sem existir, morreu sem ainda ter morrido. Passa seus dias montando o jogo da sua vida, sem saber quem é ou deixou de ser.
Seu rosto está perdido na multidão de rostos perdidos, irreconhecíveis como o seu.
Onde estão as peças que faltam?
Cadê a única peça que se perdeu?
Está no coração do homem, do menino que morreu.
Está no peito sem emoção do homem moderno que se perdeu.


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