terça-feira, 4 de agosto de 2015

28. Destoante

“Somos todos loucos aqui.”*







Noite quieta, muito fria e enluarada.
Nenhum sinal de caos lá fora. Ruas, becos e casas dormem o sono dos justos – e também dos injustos. E a lua cheia brilha sem ter quem a observe. E os cães não ladram; nem mesmo os gatos querem berrar o seu amor selvagem hoje à noite. Por ora, o mundo aparenta uma onírica normalidade e uma tranquilidade irreal, mas isso não vai durar muito.
Uma série de gargalhadas muito altas quebra o silêncio da noite:
Ha, ha, ha...
Ha, ha, ha...
Ha, ha, ha...
O lunático sempre ri na hora errada.
Sempre ri de sua própria piada, que somente ele – e ninguém mais – pode contar e escutar naquelas horas mais solitárias, quando os bons lunáticos permitem que sua loucura se manifeste sem receber de volta a censura encontrada em olhares alheios, e encontram tão somente a indiferença e a total ausência de julgamento das paredes do quarto de dormir.
Outros lunáticos riem de piadas semelhantes em outros lugares, talvez do outro lado das mesmas paredes que dividem com outros iguais, mas eles se sentem únicos. Não são.
O lunático pode até não observar o luar, mas a janela fica aberta, e a lua o observa do alto como um grande olho que tudo vê, sua única companhia.
Ele foge do marasmo da solidão que vivemos em sociedade, quando estamos cercados pelas multidões ensimesmadas à luz do dia, e escolhe abraçar a solidão da madrugada, não por causa da insônia, mas por se sentir mais vivo e acordado quando e enquanto todos dormem profundamente. Durante o dia, o lunático vagueia pelas ruas e caminha como que anestesiado entre as pessoas aceleradas, mas ele se sente mais vivo e saltitante à noite, quando estão proibidos todos os acessos de hilaridade.
É expressamente proibido ser louco.
Sabe como é, vai contra nossos manuais e princípios de boa conduta.
E é igualmente proibido expressar sentimentos que nós não aprovamos. E...
Sabe, ele não é exatamente louco, mas o tratam como tal, o tempo todo.
Por não sorrir sem ter um bom motivo, quando, por outro lado, ri com facilidade de uma piada boba, e também por não demonstrar um grande entusiasmo pelas coisas que eles tanto adoram, e talvez por isto e também por aquilo... por todos esses motivos, eles o veem como um louco irrecuperável, daquele tipo que não pode viver em sociedade por ser uma ameaça ao bem-estar de quem se encontra ao lado, uma ameaça à moral e aos bons costumes, uma vez que eles seguem um código muito rígido de conduta: você tem de sorrir para a câmera! Estamos de olho em você! Tem a obrigação de parecer normal, sempre gentil e impecavelmente civilizado.
É proibido ser amargo, e ser azedo, ser ácido, e doce, e salgado, sarcástico...
E mal sabem eles que, muitas vezes, foram e ainda são os criadores de algumas das “aberrações”, como gostam de chamar, que do nada começaram a invadir mentes que habitam em corpos aparentemente humanos; “aparentemente”, sim, pois duvidam até da possibilidade de que exista algo de humano nestes lunáticos ou naqueles loucos patológicos que vagam sem rumo pelo lado escuro da lua.
Nem todos os loucos surgem de uma mesma origem, é claro; mas os ditos normais, aqueles que dormem e acordam indiferentes, que sorriem e riem nas horas mais adequadas, e que ainda idealizam todo um mundo muito igual a eles, esses causam, direta ou indiretamente, boa parte da loucura que vemos sobre a Terra, incluindo aquela boa loucura encontrada nos outros.
O bom lunático é um espírito espontâneo e transgressor entre mentes excessivamente racionais, mesmo nos pequenos gestos. Tudo o que ele faz é mostrar que as sombras nos mostram o tempo todo que a luz ainda pode ser vista, mesmo com a passagem da luz sendo tradicionalmente obstruída por coisas que impedem a nossa transcendência. E isso incomoda porque vivemos a eterna negação da ideia de parecermos imperfeitos, enquanto o lunático reflete características que recalcamos quase o tempo todo, exceto quando estamos sozinhos. Em momentos assim, o lunático que existe em cada um de nós se liberta temporariamente de sua prisão.
Mas muitos de nós deixamos transparecer esse lunático mesmo à luz do dia e diante de todos, em nossos rostos e olhares e em certas atitudes de menor importância e... as pessoas começam a enxergar como realmente somos ou como gostaríamos de ser. E não somos aprovados.
Há aqueles que nem tentam esconder sua natureza feita de boa loucura, e mais: ainda conseguem viver assim o tempo todo, livremente lunáticos. Esses não se importam com a aprovação dos outros.
E alguns só querem mesmo chamar atenção, como um pedido de socorro. Há lunáticos para todos os gostos e tamanhos. Ha, ha, ha...
O que é a boa loucura, afinal? Mais do que contar piadas em momentos inadequados ou infelizes, mais do que viver com um sorriso exagerado de hiena a mover os músculos do rosto o dia todo, a boa loucura diz respeito aos espíritos livres ou relativamente livres, vivendo além de seus corpos, os sobreviventes conscientes das imperfeições e das cicatrizes que colecionaram durante suas existências planejadas para serem perfeitas. E mais: não lamentam terem “errado” o caminho, mas decidem seguir naturalmente por suas próprias trilhas. Sentem o gosto da sobremesa antes de se servirem do jantar, e ainda não perdem a fome, mas parecem sempre famintos neste mundo tão cheio de regras e tão pálido e tão desnutrido de vida. Arriscam-se e comem manga e bebem leite, pois dão pouca importância ao julgamento dos supersticiosos que bebem suco de manga e ignoram do que este é feito.
O lunático parece ter a sanidade muito mais apurada em um mundo que sempre tenta ocultar a própria loucura. Sua loucura, a do bom lunático, é saudável e rejuvenesce seu espírito. Faz o homem evoluir.
Numa canção quase inteiramente harmoniosa, o lunático é aquela nota destoante que insiste em aparecer quando os dedos de um músico hipotético – digamos, quem quer que esteja regendo (enquanto é regido) ou idealizando tudo ao redor de si – insistentemente escorregam para os lados, tocando a corda errada ou a tecla errada ou o orifício errado de um instrumento musical – digamos... ah, não sei...
(Suspiro.)
Não sei mais como expressar isso. Tudo bem, eu mesmo sou um tipo de lunático cheio de ideias que se atropelam na cabeça, e reconheço que a metáfora não faz o menor sentido. Tudo bem. De qualquer modo, acho que vocês já entenderam a mensagem. Espero.
E creio que essa nota destoante apenas faça parte de uma outra canção, inteiramente nova e própria e talvez ainda mais bela, feita de uma nota só ou em harmonia com outras tantas notas – igualmente destoantes – vindas de outras canções. Mas talvez (e também) isso não faça o menor sentido. Ha, ha, ha...
Somos contradições ambulantes.
Somos eternas contradições.


*“We're all mad here.” – O Gato de Cheshire em Alice no País das Maravilhas (Alice's Adventures in Wonderland.)


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