Você sabe, não seria uma verdade absoluta se eu dissesse que
finalmente – e de uma vez por todas – fiz as pazes com a vida ou
comigo mesmo, pois se trata de um processo muito longo. E, afinal, se
tudo for de acordo com as expectativas, a minha vida não termina
hoje para que eu simplesmente resolva esquecer de me reconciliar com
ela todos os dias, reafirmando de maneira constante a minha aliança
com a minha existência, demonstrando um mínimo de gratidão por ter
tido a oportunidade de existir entre tantos outros que nem mesmo
entraram nos planos do universo.
Você sabe, eu posso ser um sátiro, um piadista, um homem
espirituoso quando quero ser. Eu também posso ser um sábio quando
sou preenchido de luz. Posso ser um poço de alegria. Posso ser um
poço de bondade...
Mas às vezes sou apenas humano.
Sou feito de altos e baixos. De dualidades.
Posso rir (e fazer rir) na mesma proporção em que derramo lágrimas.
Posso ser sábio, mas também posso ser obtuso quando quero que minha
alma e minha mente respirem um pouco.
Posso ser um poço de tristeza, apesar de lembrar a mim mesmo que a
alegria ainda existe.
Posso ser bondoso ou maquiavélico, mas certamente não sou um
conceito maniqueísta.
Você sabe, somos todos humanos, e a imperfeição é um grande
alívio.
Certa vez conheci um profissional que me ensinou a agradecer por
minhas pequenas neuroses, aquelas que mais me incomodavam. Vi nisto
um método para afastá-las, quando sentia que lutar contra era nada
além de um esforço desnecessário. Eu deveria olhar para cada uma
delas fixadamente, e em seguida deveria pedir para que a neurose em
questão me libertasse, então agradecia em seguida, várias vezes, se fosse necessário, mas sem perder a calma.
Confesso que não era assim tão simples: é quase como mergulhar.
Durante o mergulho, você precisa confiar nos equipamentos e na
reserva de oxigênio, assim como naqueles que o acompanham. Você
precisa observar a própria respiração. Precisa se aceitar
como um elemento em harmonia com a água, e permitir que ela o aceite
como tal.
E o principal: não entre em pânico!
Minha imperfeição, minhas neuroses, meus dilemas, meus sentimentos
nobres e mesmo os mais vulgares, tudo isso compõe parte do todo,
ainda que em vida eu tenha muito a aprender no caminho, ainda que
veja muitas coisas serem diferentes durante a minha vida e mesmo no
homem que eu sou.
É fútil tentar lutar contra a sua natureza.
O ideal seria conhecer a si mesmo e enxergar a sua própria natureza
como algo que você pode domar sem o uso de força bruta ou de
tortura contra a sua própria alma. E não devemos encarar nossas
neuroses e dilemas como defeitos, (e admito que às vezes faço isso;
contudo, quero repetir que sou humano e imperfeito) mas podemos
compreendê-las como sendo agentes de crescimento, assim como são as
nossas lutas diárias.
Que tal se agradecêssemos mais?
Que tal se fôssemos mais gratos pelo que temos gratuitamente e pelas
coisas conquistadas?
Que tal se agradecêssemos pela oportunidade de conhecermos a nós
mesmos?
Por favor, permita-me agradecer...
Sou grato pela oportunidade de viver. Pela respiração. Pelos
batimentos cardíacos.
Sou grato pela minha infância. Ela foi doce o quanto pôde ser
dentro das possibilidades.
Sou grato pelos machucados e demais arranhões. E por aquele remédio
que causava uma ardência terrível, mas me ensinava a valorizar e a
não banalizar a dor, ensinando-me a ter mais cuidado futuramente ao
cumprir meu papel de garoto brincalhão e elétrico.
Não sou favorável ao sofrimento imposto por outros, principalmente
quando eles são conscientes disso e ainda argumentam que estão me
ensinando a ser um homem, mas agradeço a todos aqueles que fizeram
de minha adolescência um inferno.
Sou grato pelo jogo psicológico de gato e rato, no qual eu jogava
para valer enquanto vocês eram os únicos que se divertiam. Pelo
suor de meus esforços como estudante e por aqueles que fingiam ser
meus amigos e tinham o talento natural de abusar de minha boa
vontade.
Sou grato pelo dia em que tudo isso acabou e pelo sorriso que me veio
aos lábios quando vi um de vocês se desesperar ao colher o fruto
plantado de seus deméritos.
Pelos apelidos ofensivos. E pelo dia em que devolveram o meu nome.
Sou grato pela infâmia. Por aqueles que me chamam de louco ou me
amaldiçoam quando não estou presente.
Por você que não amadureceu o suficiente para me mostrar que
superei essa fase.
Sou grato por ser um fantasma silencioso, que aparece apenas quando
sente o desejo. Eu entro e saio sem ser incomodado. Cuido de minha
vida e de minha vida só eu cuido.
Sou grato pelos momentos raros de silêncio, muito raros hoje em dia.
Pela boa musicalidade da vida e do universo, mesmo quando a canção
não é das mais felizes. Sou grato por gostar especialmente de
canções que tocam e sacodem a minha alma, e não o meu traseiro.
Sou grato por ter tentado correr contra o tempo quando eu ainda não
estava preparado.
Sou grato pelo estouro de minhas neuroses. Pelos dilemas de cada dia.
Sou grato pelos longos meses de choro e pelas lágrimas derramadas
por nada.
Pelas noites insones e pelo sono pegajoso.
Pelo medo irracional de morrer.
Por meu primeiro amor. Que mudou minha vida para sempre.
Pela canção no piano.
E por nosso primeiro beijo, seguido de um suspiro. Foi libertador.
Sou grato por você ter lutado ao meu lado.
Pelos altos e baixos. Pelas alegrias e tristezas. Pelas eventuais
decepções.
Sou grato por ter me ensinado a viver intensamente, ao mesmo tempo em
que aprendia comigo a ter um pouco de juízo.
Não sou exatamente grato pelo dia em que desistiu de lutar, mas
posso entender. E eu queria que você tivesse entendido isso: sou um
homem, apesar de ser tão jovem.
Sou grato por você ter me libertado ao abrir mão de nós, de nossos
sonhos.
Pelas lágrimas que derramei no dia de sua partida prematura.
Por saber que fui o amor de sua vida. No fim, nós dois vencemos.
Sou grato pela vulnerabilidade, comum na liberdade.
E pela oportunidade de ser seletivo. De estar no comando, para
variar; ainda que eu tenha de me curvar para as circunstâncias, para
variar. Lembro-me de como tudo parecia tão mais simples quando
éramos apenas você e eu. Sou grato por você ter deixado a minha vida virar
de cabeça para baixo.
Muito obrigado pelas fotografias que fazem você ressurgir,
provocando-me um susto. Elas me fazem pensar que talvez você ainda esteja entre nós, apesar de saber que isso não é verdade. Sou grato pelas
boas lembranças, mesmo daquelas em que não estive presente, das quais não me convidou.
Devo mencionar quem apareceu depois.
Sou grato por quem fez um ano obscuro se tornar o mais épico de
todos.
Sim, você.
Sou grato porque você existe.
E pelas circunstâncias que fizeram os
nossos caminhos se cruzarem. Por nossas histórias semelhantes, ainda
que diferentes.
Obrigado por ter aberto suas portas e por ter recebido esse jovem
tolo, mas que pensa saber de tudo, inclusive sobre sentimentos. Mas
sentimentos nada sabem e não se explicam. Você sabe, eu sou
sensível na mesma medida em que sou um sábio imperfeito. Sou um
jovem sonhador, que não deixa de sonhar apesar de minha melancolia
constante.
Sou grato pelo seu dom natural de fazer eu me sentir bem, ainda que
duvide.
Por tornar meus dias mais emocionantes.
Por ter me ensinado a sorrir com menos vergonha de mostrar os dentes.
Por ter me convidado a ver o céu noturno ficar iluminado e pelos
passos tortos na areia.
Por ter cuidado de mim, apesar de eu ser um péssimo paciente.
Por você ter sido paciente quando fui tolo e me desesperei sem a
menor necessidade. Pelas lágrimas que derramei quando tudo o que
você mais desejava era me fazer sorrir. Sou grato pelas palavras que
precisavam ser ditas minutos antes de eu ter de voltar à minha
realidade.
Por ter rido e chorado comigo.
Novamente, eu sou grato porque você existe.
E vive, e respira, e é real.
Em suma, eu sou grato por tantas coisas, mas sei que você não aguentaria ler isso por muito mais tempo. Eu já fico admirado que você tenha conseguido ter paciência de ler até aqui.
Calma! Só mais um pouco e acaba.
Sou grato por aqueles que me trouxeram à vida e me permitiram
vivenciar tudo isso. Um único parágrafo é muito pouco para
expressar o quão grato sou, mesmo com as nossas diferenças, pelo
simples fato de terem me planejado com muito carinho. Eu não sou o
filho perfeito, é claro, mas sei o quanto lutam por mim. Obrigado por tudo.
Sou grato por quem faz minha vida ser possível.
Sou grato pela vida, um dia após o outro. Uma gratidão a ser
renovada.
E também pela morte, minha eterna inimiga sem rosto. Pois a perspectiva de um fim torna a vida muito mais valiosa, assim
como tudo o que ela nos reserva.
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