quarta-feira, 28 de setembro de 2016

37. Panorama

Céu azul e distante, porém perto o suficiente para beijar o topo das árvores. O farfalhar de folhas ao vento, desprendendo-se dos galhos e caindo, uma a uma, em câmera lenta. Mil mãos invisíveis acariciando-me o rosto com toques gentis, ainda que gélidos. O sol um tanto tímido, indeciso se fica ou se já vai embora por hoje, iluminando o suficiente para tornar mais brilhante o verde das folhas que ainda resistem à força dos ventos. A sinfonia desordenada de muitos pássaros escondidos, misturada ao canto ritmado do grilo que se adiantou — uma mensagem indecifrável da natureza no meio da tarde. Marteladas distantes, intervalo, marteladas distantes. Hélice de helicóptero. Farfalhar de folhas ao vento. Mesa de café, aroma adocicado. Ronco de motores. Aroma de café. Tudo isto eu sinto e ouço, tão real como eu sou.
Quando olho para cima, o céu desmancha o que restou de seu sorriso tímido. Quando olho para cima, contemplo uma face enorme, bela e gélida, quase severa. O céu foi tomado pelas nuvens. Há mais nuvem do que céu. Por um momento, o mundo aguarda em silenciosa, porém ansiosa, expectativa.
É a tempestade que se aproxima.
Fecho os olhos e depois acordo numa tarde ensolarada. Tudo se foi com as águas. O retrato agora é outro.
O mar se revolta, mas a brisa que vem dele é suave ao toque. Sirvo-me de sol e silêncio. Setembro. Ainda não há muita presença humana aqui perto, e assim dormi ao contemplar o mar e a mulher que tentou contê-lo numa fotografia panorâmica. Adormeci sob o sol. Acordei e ela não está mais ali com sua câmera, nem o garoto que empinava pipa, nem os pescadores com uma rede enorme.
Quando olho para cima, o céu não está mais sorrindo. Esbraveja. Suas primeiras lágrimas isoladas vêm ao meu encontro. Corro, procurando abrigo. Encontro sob a marquise de uma loja na avenida principal, fora da praia. O choro se transforma numa torrente de sentimentos desmanchados. O mundo chora, desabafa. E o céu desaba.
Olho para as minhas imperfeições, para as minhas mãos ressecadas, mas que agora estão borradas de minha própria substância. Com as lágrimas do céu em minhas mãos, elas se desmancham, e suas cores se derramam no chão cimentado, do mesmo cinza que desmancha a face enorme do céu. Olho para o mundo e vejo suas cores se escorrerem. Pesadelo.
Mesa de café, aroma adocicado. Ronco de motores. Aroma de café. Tudo isto eu sinto e ouço, tão real como eu sou.
Tudo o que eu tive foi um pesadelo de olhos abertos. Foi? Sim. Foi isso. Eu acho que foi. Num momento eu pisco, no outro vejo o mundo se desmanchar em cores borradas. Quando pisco de novo, as lágrimas já se foram, e as cores estão desbotadas.
Seria tudo assim tão real? Estou realmente vendo o que eu vejo? Estou realmente ouvindo o que eu ouço? De verdade eu sinto tudo isto? Os sabores são reais? E as histórias que não estão nos livros... Também são?
Na tentativa de descrever o mundo como eu vejo, entre as molduras de meu campo de visão, penso que também estou sendo descrito como sou visto. Sou parte de um grande cenário — além das árvores, das folhas, dos grilos e dos pássaros. Sou um pequeno ponto perdido numa vista panorâmica visualizada por outro alguém de olhar aguçado.
Olho para as minhas mãos, e elas foram devidamente restauradas. O ressecamento na pele continua ali, as imperfeições não estão fora do lugar. Nas palmas, a linha da vida que lentamente se apaga. Estou de volta.
Mesa de café, livros ao lado, aroma de café, tela branca na minha frente, letras que aparecem magicamente.
Descrevo o microcosmo de meus sentidos mais primários. Minha mente transforma meus sentidos em significado. Traduzo em palavras o que eu vejo, ouço, sinto, saboreio e cheiro. Minha mente desenha com palavras o que vejo, o que imagino, o que acredito, além das coisas que eu não vejo. Pinta um retrato limitado, com imagens extraídas de uma imaginação ilimitada.
Você não vê o mesmo que eu, meu amigo imaginário. Minha amiga imaginária, você não sente o mesmo que eu. Nem queira.
Olhe à sua volta, e diga-me: o que tu vês?
Uma projeção. Uma grande pintura em movimento de um imenso sonho de olhos abertos. Magia num mundo não mágico.
Olho para o céu e me vejo dentro de um globo de neve, com a diferença de que aqui não há flocos brancos e gelados, mas grãos de areia. Sou sacudido todos os dias dentro deste globo translúcido. A face enorme do céu se oculta sob o manto de escuridão de uma noite que se inicia. Vozes. Marteladas. Hélices. Logo ficarão em silêncio, e somente os grilos, morcegos e latidos estarão presentes.
Um dia após o outro. Eu acordo, o dia termina, eu acordo de novo. O mesmo retrato, apenas os detalhes mudam. Reparos são feitos. Erros e acertos. O mesmo céu sorri, o mesmo céu chora; às vezes, no mesmo dia. O perfume de uma noite quente. O frescor de um novo dia. Um retrato com cores, cheiros, sons, sensações e sabores. Todos diferentes.
Pensando nisso, deito à noite e fico imaginando o que irei sonhar.
Então, eu penso: mas, e se o sonho for a realidade, e não o contrário? E se isto aqui for um pesadelo, um mundo que se diz real, mas que, na realidade, comporta-se de modo mais surreal que todos os meus sonhos juntos?
O que garante a autenticidade do sabor deste café de aroma tão doce? O que garante que este som ao redor de mim não vem de meu sonho e foi deixado lá, tocando enquanto eu acordava? Quem garante que, quando me vejo dentro de um sonho, eu não estou me vendo em minha verdadeira existência?
Perdão. Estou devaneando.
Fecho os olhos e espero o sono vir.
Quando abro os olhos outra vez, sou transportado para o mesmo pesadelo de mundo desmanchando-se sob as lágrimas de um céu que lamenta estar sobre um mundo tão barulhento e inquieto, que abafa os próprios sons naturais. Olho para as minhas imperfeições, para as minhas mãos, que estão outra vez borradas de minha própria substância. Sou um homem feito de tinta, assim como o resto do mundo.
Estou acordado?
Estou dormindo?
O pesadelo continua.
O meu verdadeiro eu é este que se abrigou da chuva e viu o mundo se transformar, ou aquele que, sentado à mesa de café, viu a aproximação da tempestade, no início de tudo? Sou uma soma de ambos? Ou não sou nenhum?
Olho para cima e enxergo um rosto entre as nuvens. Pareidolia? O choro é interrompido, mas não a trovoada. Vejo uma mão de nuvem se esticar ao meu encontro. Devo estar na imaginação deste ser que toca em minhas mãos borradas de tinta com as cerdas de um enorme pincel, ou o pintor deve estar na minha. Sou um reflexo dele ou ele é o meu? Ele me fez à sua imagem e semelhança ou eu o fiz à minha?
É o que muitos se perguntam todos os dias.
O mundo é um grande quadro sem moldura, contido dentro de outra fotografia ou pintura maior, dentro de uma fotografia ou pintura ainda maior. Meu mundo, mundo além de mim e universo. Você pode ir o mais longe que puder, viajar pelo mundo, pelos planetas, pelas galáxias, e, ainda assim, não encontrará a moldura.
Olho para cima, depois de ter visto minha mão ser restaurada pelos toques suaves de pincel. Ignoro a ideia de parecer louco. Grito em público, olhando para o céu.
Grito uma pergunta: Você é real ou fruto da minha imaginação?
Silêncio.
Então, uma voz. Uma voz reverberante. A voz do trovão. Devolve a minha própria pergunta: Você é real ou fruto da minha imaginação?
Uma pergunta que fica no ar, sem resposta.
É neste momento que eu abro os olhos.
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