Registro dos últimos acontecimentos, de muito do que
temos visto.
Minhas cordiais saudações às futuras gerações, que
provavelmente lerão a isto com o pensamento de que leem notícias
muito velhas. Fato: nada nesta carta é uma novidade, mas nos dias
que se seguem – os meus
dias –, todos esses acontecimentos recebem uma consideração maior
devido às suas implicações.
É possível que vocês tenham superado a tudo isso,
como também é possível que tenham se afundado em um poço muito
fundo de consequências devastadoras. Vou mais além: é bem possível
que não tenha sobrado um único leitor no futuro.
Ainda não sabemos como tudo isso termina.
Mas deixo esse registro como um aviso a respeito tudo o
que terão herdado de nós, das pessoas do passado, de seus
ascendentes insensatos. Talvez, eu não sei, isso seja mais uma
tentativa desesperada de inspirar mudanças a serem operadas por
aqueles que ainda hão de vir em um futuro não tão distante.
Quero que saibam que, com isso, eu tentei fazer a minha
parte.
Nem tudo isso eu vi somente pela visão das lentes, mas
algumas destas coisas eu também vi com meus próprios olhos. E uma
parte de tudo isso eu senti com meus demais sentidos.
Tenho vivido um dos séculos mais impactantes de toda a
História.
Fomos agraciados ou golpeados diariamente por
incontáveis informações, e testemunhamos o surgimento de algumas
das lentas transformações há muito esperadas; mas talvez, ainda
não sei, eu não tenha visto a conclusão de tais transformações
por causa dos defensores remanescentes das velhas causas perdidas. O
ódio, o medo e a corrupção humana obscureceram o coração de
muitos e assombraram o espírito de todos, e assim o mundo se viu
mendigando paz.
A violência cresceu e se espalhou como uma doença
epidêmica, muito depressa, e não por falta de aviso; mas ela tem sido
precariamente remediada, e não mais prevenida, mesmo com todos os
recursos dos quais alguns de nós orgulham-se de ter em mãos.
Pessoas se empurram e se pisoteiam como que em estouros
de boiada, e ainda matam umas às outras com palavras embebidas em
veneno; todos os dias, longas batalhas são travadas nos cenários
mais ordinários. Diga-me, então, qual teria sido o grande motivo
para tamanha loucura? Eu diria que foi aquela velha e eterna ambição
desesperada de garantir um pequeno espaço individual, seu ou meu,
aqui nesta Terra. Uma pequena fatia de nada.
Mesmo as crianças têm provado do veneno da violência,
e sorriem muito satisfeitas quando sentem o envenenamento de suas
almas e os efeitos de sua corrupção. Se anteriormente selamos a
promessa de protegê-las de qualquer perigo que viesse de fora, (e,
consequentemente, daqueles perigos internos que porventura ignoramos
e até negligenciamos) hoje, por outro lado, temos trancado nossas
portas internas à chave ou com dois ou mais cadeados: uma pequena
medida de segurança contra as nossas próprias crianças.
E nos dias que se seguem, palavras doces e
agradecimentos, ameaças de morte e insultos dividem a escuridão das
mesmas bocas que alimentamos. Tememos o dia de nossa extinção pelas
mãos daqueles que um dia ajudamos a atravessar uma avenida
movimentada.
Sim, é verdade, mais uma profecia se cumpriu, e o
amor...
O amor se esfriou.
O amor reprodutivo, no entanto, esse tem se multiplicado
como pedido e não tem falhado tanto, ainda que por acidente; ora,
temos muita informação em mãos, é bem verdade, mas o
discernimento não é o dom de muitos; e então tem sido muito mais
simples condenar o amor autêntico e maior de tantos outros e povoar
ainda mais esse mundo por conveniência do que se responsabilizar e
prover o que for necessário para a criação desses filhos.
Esses filhos são vigiados de perto e estão bem
seguros, e não incomodam mais: eles ficam em silêncio e são
educados pelas maravilhas da modernidade, e conhecem a respeito de
verdades ou ilusões em suas longas viagens por um mundo virtual
muito mais vasto que o natural e, ainda assim, prodigiosamente
instalado em aparelhos que cabem na palma da mão. Babás, essas não
são mais necessárias.
E os mais experientes não são mais os portadores do
conhecimento; hoje, os mais jovens ensinam aos mais velhos. Para o
bem ou para o mal.
Tudo mudou.
E o mundo tem girado muito mais depressa e em muito
pouco tempo.
Somos aquela geração de idiotas profetizada por
Einstein. E vocês, nossos descendentes incautos... vocês serão,
possivelmente, a evolução disso.
Eu espero que não.
Pessoalmente, nunca vi muita justiça naquele conceito
de hereditariedade em que os erros e acertos são automaticamente
transmitidos de uma geração para a outra, mas as coisas parecem ser
desta maneira. E logo saberão que, se nada for feito a respeito, a
tendência no futuro é de que o mundo será habitado somente pelos
descerebrados, sem alma e sem rumo.
E talvez sem volta.
Ninguém mais quer se parecer ou agir como os antigos
sonhadores.
Nos dias que se seguem, ninguém mais olha para o céu à
procura de figuras nas nuvens, mas nos curvamos para os nossos novos
deuses substituíveis – os deuses tecnológicos – e temos nos
conectado unicamente com eles e com o nosso ego inflado. Não nos
lembramos mais do rosto de nossos pais, de nossos filhos e amigos.
Pressionando um único botão, um único homem tem a
ilusão de ter o poder de fazer o mesmo trabalho de dezenas ou
centenas de pessoas; mas esse mesmo homem sabe que pode vir a ser
dispensável no futuro.
Logo me vem a imagem de um futuro em que os filhos
bastardos da Terra irão vagar por ela à procura de algo que ainda
necessite unicamente de toques humanos, e não terão êxito na
missão; há muito se esqueceram das coisas realmente importantes,
ficaram cegos e se desencontraram.
“Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.”*
E uma grande parcela da humanidade se esvaziou de amor e
de propósito.
E desumanizou-se.
E a Terra não aguenta mais parir e ter de carregar um
número exorbitante de filhos vazios, mas não menos pesados, em cima
de seus ombros dolorosamente deslocados; e vive exaurida de tanto
amamentar com um seio quase vazio, e muito ferido e infeccionado,
enquanto outros tantos filhos ainda continuam famintos e vivem
chorando em silêncio. Talvez não morramos de sede, mas bebemos de
nossas próprias lágrimas.
Mas nem tudo são trevas ou nuvens escuras: o sol
continua a sorrir como sempre, calorosamente; e mais: ele tem
brilhado por muito mais tempo, emanando do alto uma radiante
radiação, e vive sorrindo com indiferença para tudo o que tem
acontecido aqui embaixo.
Temos corrido contra o tempo e corrido de nós mesmos.
E dos outros.
Vivemos a era do individualismo e do vício em nós
mesmos, por mais que corramos e fujamos; como se sofrêssemos de uma
síndrome de Estocolmo em que somos vítimas e algozes de nós
mesmos, e ainda assim nos procuramos em dependência.
Vivemos a era da razão e da total ausência de
imaginação.
Vivemos a era do cinismo.
Nos dias que se seguem, muito se fala sobre falso
moralismo, de modo que ninguém mais sabe apontar qual teria sido o
verdadeiro. E nos dias que se seguem, as pessoas querem fazer valer o
seu direito de terem uma opinião, mesmo sobre coisas das quais não
entendem ou que em nada afetam suas vidas.
Vivemos uma era de contradições.
Vivemos uma era de fartura e de excessos.
Mas tem sobrado de um lado e faltado do outro.
Tem faltado amor.
Tem faltado bom senso.
Tem faltado reflexão antes da ação.
Tem faltado ação depois da reflexão.
Tem faltado o grito que quebre os espelhos que refletem
rostos apáticos.
Tem faltado alma viva.
Tem faltado um surto de consciência.
Tem faltado mais atitude após o grito de guerra.
Tem faltado um bom rock
and roll.
E muito mais.
Eu poderia falar de muito, muito mais, mas todas essas
coisas não caberiam no papel.
Nos dias que se seguem, em nada mais acreditamos, nem
mesmo na esperança de que as coisas podem ser diferentes. Séculos e
séculos desapareceram nas areias do tempo, mas as velhas histórias
ainda se repetem. Mesmo a minha história é uma repetição de
tantas outras, e mesmo a minha geração já havia sido alertada para
o que viria logo depois – o mesmo que estou fazendo agora, mas por
vocês que ainda nem sonharam em nascer. Meus votos sinceros de
sobrevivência às futuras gerações, se ainda não conseguimos
destruir tudo até a sua vinda.
E lembrem-se, meus filhos, e filhos dos meus filhos, do
seguinte conselho: o livre-arbítrio ainda é um dos nossos grandes
remediadores. Por favor, usem-no com sabedoria.
E que possamos quebrar a profecia!
*O Pregador, em Eclesiastes (capítulo 1, versículo 2.)
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De fato hoje em dia todos querem ter uma "opinião formada sobre tudo" como profetizava Raul Seixas...a maioria acaba emaranhada nas teias desse grande vazio coletivo..
ResponderExcluirParabéns Rodrigo.
Verdade, Alvaro. E nessa de todos com essa necessidade de terem uma opinião formada sobre tudo, a gente pouco ou nada conclui. Obrigado por mais esse comentário, meu querido.
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