Aviso:
O texto a seguir é uma obra de ficção, mas poderia ser a história de alguém que você conhece. Não é a intenção do autor fazer apologia aos temas fortes aqui apresentados, mas unicamente de levantar o debate sobre um problema muito sério que não pode ser ignorado.
Boatos
afirmam que Fulano de Tal é um dissimulado que se comporta como o filhinho
ideal na frente dos pais, mas age como um estranho quando não estão olhando.
Os
pais parecem não saber a respeito das companhias suspeitas do filho, nem das
coisas que as pessoas dizem pensar sobre ele. De seus movimentos furtivos. Das
músicas inquietantes que vazam dos fones de ouvido. E da discrição indiscreta
de alguém que não age como um garoto supostamente normal.
Nunca
cumprimenta ninguém nas ruas, sorri muito pouco, caminhando com as mãos nos
bolsos, e desvia o olhar quando olham em seus olhos.
Papai
não quer saber; na verdade, ele sabe, mas não quer ver. Sabe que seu filho é
como um trem que saiu dos trilhos. Papai finge não ouvir os comentários
sussurrados atrás dele, na fila da padaria, no caixa do supermercado. Conhecem
mais a respeito de sua cria do que ele mesmo soube algum dia; mas nada disso
valeria o estresse de um confronto.
Mamãe
não sabe. Ela vê um bom menino – o menino que ele nunca deixaria de ser.
Brincalhão, sorridente, bom aluno, bom menino. Nove meses bem investidos, um
belo sonho cumprido, pouco ou nada a reclamar.
De
todos os lados, o mesmo personagem é imaginado em histórias e versões
diferentes. Duas ou mais pessoas dificilmente falam sobre a mesma pessoa.
Brincam
de telefone sem fio.
Fulano
de tal.
Ah!
Ele não é mau, mas gostaria de ser.
Ser
mau justificaria tudo o que sentia haver de errado no mundo e nele mesmo. Seus
amigos são os únicos a compreendê-lo, e os únicos que dialogam de verdade com
ele, mesmo que com os olhares e o silêncio compartilhado.
Ele
queria ser mau, mas mau ele não consegue ser.
Consegue
ser ele mesmo: um livro sem figuras; uma pintura abstrata não admitida numa
galeria de arte; uma canção muito longe de ser um hit. Pura cacofonia.
Nem
seus amigos o conhecem por inteiro. O próprio se desconhece; motivo pelo qual
ele vive dialogando consigo mesmo, seu melhor amigo, seu único e verdadeiro
inimigo. Sua sombra, sua própria luz nas horas mais solitárias.
Na
brincadeira de telefone sem fio, ele não recebe as mesmas mensagens que envia
para si mesmo. Sua cabeça é congestionada em meio a mensagens em conflito,
entre verdades internas misturadas com as mentiras contadas do lado de fora.
Papai
bate na porta. Tudo bem, Fulano de Tal?
Eu
não sei, pensa. Tudo bem, responde.
Realmente
não sabe. Mas, quem mais, além dele, poderia saber?
Mamãe
bate na porta. Durma bem, meu filho.
Obrigado,
pensa. Estou num pesadelo, diz. Pode me acordar quando me ouvir gritar, por
favor?
Obrigado,
mamãe, ele corrige logo. Mamãe nunca ouviu uma única palavra que fugisse de seu
script de sonhos calculados.
Precisa
de alguma coisa, querido?
Ele
queria contar tudo.
Queria
dividir com ela o seu próprio eu dividido – os mil fragmentos do grande mosaico
de histórias de Fulano de Tal. Queria ter a coragem que seus amigos nunca
teriam em conversar com os próprios pais. Queria partir as correntes de
incomunicabilidade que o prendiam dentro de si. Queria fazer com que todos se
comunicassem de alguma forma.
Precisa
de alguma coisa, querido?
De
comprimidos para dormir.
Mamãe
não passou por aqui.
Papai
saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Fulano de Tal ainda era menino:
calado, quieto, tímido. O que havia de errado com ele? Papai não quis saber,
nunca quis entender.
Mamãe
vive de cafeína durante o dia e de calmantes durante a noite. Durante o dia,
ela sorri pelas pequenas conquistas do filho, por coisas que não entende, mas
deita sob o efeito de calmantes à noite, querendo muito esquecer que um dia ela
também fora esquecida.
Precisa
de alguma coisa, querido?
De
uma corda, de uma cadeira... E o resto você já pode imaginar.
Boatos
afirmam que Fulano de Tal escreveu cartas e diários secretos. Durante sua breve
vida, ele contou a história verdadeira de quem era, qual era sua missão aqui na
Terra, e que, na realidade, ele era um alienígena imune à doença da alegria.
Vivia num mundo repleto de informações, mas vazio de diálogos. Um mundo que
valorizava o sorriso e ignorava os pedidos de socorro. Comunicavam-se apenas
por meio de boatos.
Seus
amigos, dizem os boatos, sabiam de tudo.
Nunca
foram bem-vindos ao mundo entre as paredes da casa de Fulano de Tal. Por ele,
seriam. Pela mãe – e um pouco pelo pai nos primeiros anos –, ele nunca soube;
ele nunca pediu permissão, nunca perguntou se qualquer dia poderia receber seus
amigos em casa para dividir com eles as pequenas alegrias que não tinha. Mas
eles foram convidados a contar tudo o que sabiam.
De
nada sabiam, foi o que disseram entre lágrimas.
Já
que ele não sabia ser mau, Fulano de Tal descobriu outro modo de quebrar com o
efeito da indiferença, outra maneira de ser igualmente cruel, uma vez que
somente um ato extremo de crueldade abalaria corações calejados em um mundo
regido pela indiferença.
Ele
queria mesmo ter escrito aquelas cartas e diários secretos, mas agora é tarde
demais.
Nunca
falou a respeito de si mesmo, e não seria agora que começaria a falar.
Histórias
podem ser inventadas, contadas e recontadas ao gosto de quem as imagina. Fulano
de Tal sabe que pode ser visto como um bode expiatório, o sacrifício
necessário, assim como pode ser visto como aquele que foi vencido.
Ele
consegue imaginar o que irão dizer.
“Covarde.
Não aguentou o tranco. Ele sempre me pareceu um morto-vivo. Foi culpa daqueles
amigos estranhos. Eles envenenaram a cabeça daquele rapaz. Onde esteve aquela
mãe? Onde estava o pai? Deve ter algo a ver com as músicas daquele cara que se
matou.”
Fulano
de Tal sorri, tentando imaginar todas as coisas que diriam logo na manhã
seguinte, todas as histórias que, de algum modo, acrescentariam mais camadas à
história verdadeira, aparentemente vazia de emoções. Sorri abrindo o armário de remédios no
banheiro e pegando um frasco de comprimidos para dormir. Ele olha para o frasco
e desmancha o sorriso.
Volta
ao quarto, de onde não se lembra de ter saído, e se deita na cama. Hora de
dormir. De mergulhar num sono profundo, sem sonhos.
Sente
o frasco entre os dedos suados. Dedos que suam frio. Está com medo, pensando no
quanto sua mãe ficaria machucada, quando ele apenas quer que ela siga em frente
agora que não mais o teria como uma lembrança de suas maiores frustrações. Ela
fingia sentir alegria com as pequenas conquistas do filho, mas nem sequer se
deu ao trabalho de deixar os comprimidos longe de seu alcance por mais tempo.
Ele sempre soube que nunca foi o filho perfeito.
Vamos... Anda logo... Vamos... Anda
logo...
Sua
alma murmurou, estava sem forças para gritar.
Quanto
mais demorasse, mais difícil seria.
Deitado,
Fulano de Tal abre o frasco e enche a palma da mão de comprimidos. Sua mão
começa a tremer a caminho de sua boca; seus lábios estão igualmente trêmulos.
Se não fizesse agora, nunca mais faria.
É
neste momento que um grito repentino quebra o silêncio da noite.
O
susto provoca um solavanco no corpo do rapaz, e sua mão solta os comprimidos,
derrubando-os no peito e no pescoço. Num momento ele estava perto de consumar
seu ato, e no momento seguinte...
Outro
grito igual ao primeiro vem logo em seguida, depois mais outro, e outro – num
mesmo padrão, seguindo o mesmo intervalo entre gritos e silêncios. O telefone
que nunca toca para ele. Madrugada. Um mau presságio.
Dopada,
Mamãe não atenderia. Bela adormecida.
Fulano
de Tal se levanta da cama, derruba frasco e comprimidos na cama e no chão, e
corre para a sala. Esquece a si mesmo nos comprimidos abandonados, tira o
telefone da base e o atende depois do sexto toque.
Alô?
Fulano?
Uma
voz embargada pelo choro.
Sim.
Quem é?
Fulano,
aqui é Beltrano.
Um
de seus amigos. Como foi que ele conseguiu o seu número? Nunca telefonaram para sua casa perguntando por ele, e as pessoas apenas perguntam se ele está bem por
intermédio de sua mãe, uma pergunta terceirizada.
Ele
não se lembra de alguma vez ter dado o número do telefone para algum de seus
amigos; mas, considerando a confusão mental crônica que o aflige, ele não se
surpreende com a ideia de ter esquecido.
Caminha de volta para o quarto, levando o
telefone sem fio. Senta na cama e apalpa o travesseiro amassado
enquanto conversa.
O
que houve?
Eu...
Eu... Eu quase fiz uma loucura, cara.
Silêncio
curto.
Você
entende?
Silêncio.
Informação
processada pela mente.
Compreensão.
Sim.
Entendo.
Eu
liguei para você porque... Sabe, você sempre me pareceu
ser o mais forte entre nós. Você é o que parece estar mais inteiro, mesmo
depois de tudo o que te aconteceu. É o único que tem a chance de seguir em
frente. Nunca disse isso, mas sempre tem uma primeira vez para tudo, não é
mesmo?
Silêncio
prolongado. Respiração de ambos os lados. Fulano para de apalpar o travesseiro
e pensa um pouco a respeito do que ouviu.
Seria
ele o único com chances de seguir em frente? Pensando melhor, ele realmente tem
muito mais em sua vida do que alguns de seus amigos: ele tem um teto sobre sua
cabeça e... Bom, eles também têm; ele tem panela cheia e nunca passou fome na
vida... Tudo bem, seus amigos também não.
Seja
como for, Beltrano vê em Fulano algo que falta nele mesmo e nos outros, algo
que Fulano desconhece existir, algo que nunca sentiu estar ali.
Então...
Fulano?
Beltrano diz, agora sem choro na voz. Alô?
Fulano
de Tal chora em silêncio. Lágrimas grossas fazem seus olhos arderem.
Você
está aí?
Sim,
ele está.
Sim,
ainda estou aqui.
Tenta
conter o choro, mas o fluxo de lágrimas continua a deslizar pelo rosto.
Sua
voz não pode trai-lo agora. Beltrano ainda deve pensar que o amigo continua a
ser o mais forte entre eles.
Pergunta
o que sempre quis ouvir.
Precisa
de alguma coisa?
Sim. Eu... Eu não quero ficar sozinho. Você pode vir me encontrar aqui no portão?
Claro.
Você
promete que vem?
Prometo.
Obrigado,
Fulano.
Há
gratidão naquela voz. E o próprio Fulano de Tal sente uma vontade repentina de
agradecer, mas não o faz. Precisando de ajuda, foi seu amigo quem o ajudou
primeiro; mas agora é a sua vez de ajudar, apesar de ainda não saber como.
Fulano
de Tal se despede do amigo e desliga o telefone. Levanta da cama e olha para
baixo. Vê os comprimidos espalhados entre os lençóis e no chão frio, e eles
parecem hipnotiza-lo com uma promessa não pronunciada. Mas não demora a lembrar
da promessa inadiável que fez ao telefone, o propósito repentino que encontraram
para ele esta noite, e que pode mudar os rumos desta história.
O
fim pode esperar.
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