sexta-feira, 9 de setembro de 2016

36. Telefone Sem Fio

Aviso:
O texto a seguir é uma obra de ficção, mas poderia ser a história de alguém que você conhece. Não é a intenção do autor fazer apologia aos temas fortes aqui apresentados, mas unicamente de levantar o debate sobre um problema muito sério que não pode ser ignorado.



Boatos afirmam que Fulano de Tal é um dissimulado que se comporta como o filhinho ideal na frente dos pais, mas age como um estranho quando não estão olhando.
Os pais parecem não saber a respeito das companhias suspeitas do filho, nem das coisas que as pessoas dizem pensar sobre ele. De seus movimentos furtivos. Das músicas inquietantes que vazam dos fones de ouvido. E da discrição indiscreta de alguém que não age como um garoto supostamente normal.
Nunca cumprimenta ninguém nas ruas, sorri muito pouco, caminhando com as mãos nos bolsos, e desvia o olhar quando olham em seus olhos.
Papai não quer saber; na verdade, ele sabe, mas não quer ver. Sabe que seu filho é como um trem que saiu dos trilhos. Papai finge não ouvir os comentários sussurrados atrás dele, na fila da padaria, no caixa do supermercado. Conhecem mais a respeito de sua cria do que ele mesmo soube algum dia; mas nada disso valeria o estresse de um confronto.
Mamãe não sabe. Ela vê um bom menino – o menino que ele nunca deixaria de ser. Brincalhão, sorridente, bom aluno, bom menino. Nove meses bem investidos, um belo sonho cumprido, pouco ou nada a reclamar.
De todos os lados, o mesmo personagem é imaginado em histórias e versões diferentes. Duas ou mais pessoas dificilmente falam sobre a mesma pessoa.
Brincam de telefone sem fio.
Fulano de tal.
Ah! Ele não é mau, mas gostaria de ser.
Ser mau justificaria tudo o que sentia haver de errado no mundo e nele mesmo. Seus amigos são os únicos a compreendê-lo, e os únicos que dialogam de verdade com ele, mesmo que com os olhares e o silêncio compartilhado.
Ele queria ser mau, mas mau ele não consegue ser.
Consegue ser ele mesmo: um livro sem figuras; uma pintura abstrata não admitida numa galeria de arte; uma canção muito longe de ser um hit. Pura cacofonia.
Nem seus amigos o conhecem por inteiro. O próprio se desconhece; motivo pelo qual ele vive dialogando consigo mesmo, seu melhor amigo, seu único e verdadeiro inimigo. Sua sombra, sua própria luz nas horas mais solitárias.
Na brincadeira de telefone sem fio, ele não recebe as mesmas mensagens que envia para si mesmo. Sua cabeça é congestionada em meio a mensagens em conflito, entre verdades internas misturadas com as mentiras contadas do lado de fora.
Papai bate na porta. Tudo bem, Fulano de Tal?
Eu não sei, pensa. Tudo bem, responde.
Realmente não sabe. Mas, quem mais, além dele, poderia saber?
Mamãe bate na porta. Durma bem, meu filho.
Obrigado, pensa. Estou num pesadelo, diz. Pode me acordar quando me ouvir gritar, por favor?
Obrigado, mamãe, ele corrige logo. Mamãe nunca ouviu uma única palavra que fugisse de seu script de sonhos calculados.
Precisa de alguma coisa, querido?
Ele queria contar tudo.
Queria dividir com ela o seu próprio eu dividido – os mil fragmentos do grande mosaico de histórias de Fulano de Tal. Queria ter a coragem que seus amigos nunca teriam em conversar com os próprios pais. Queria partir as correntes de incomunicabilidade que o prendiam dentro de si. Queria fazer com que todos se comunicassem de alguma forma.
Precisa de alguma coisa, querido?
De comprimidos para dormir.
Mamãe não passou por aqui.
Papai saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Fulano de Tal ainda era menino: calado, quieto, tímido. O que havia de errado com ele? Papai não quis saber, nunca quis entender.
Mamãe vive de cafeína durante o dia e de calmantes durante a noite. Durante o dia, ela sorri pelas pequenas conquistas do filho, por coisas que não entende, mas deita sob o efeito de calmantes à noite, querendo muito esquecer que um dia ela também fora esquecida.
Precisa de alguma coisa, querido?
De uma corda, de uma cadeira... E o resto você já pode imaginar.
Boatos afirmam que Fulano de Tal escreveu cartas e diários secretos. Durante sua breve vida, ele contou a história verdadeira de quem era, qual era sua missão aqui na Terra, e que, na realidade, ele era um alienígena imune à doença da alegria. Vivia num mundo repleto de informações, mas vazio de diálogos. Um mundo que valorizava o sorriso e ignorava os pedidos de socorro. Comunicavam-se apenas por meio de boatos.
Seus amigos, dizem os boatos, sabiam de tudo.
Nunca foram bem-vindos ao mundo entre as paredes da casa de Fulano de Tal. Por ele, seriam. Pela mãe – e um pouco pelo pai nos primeiros anos –, ele nunca soube; ele nunca pediu permissão, nunca perguntou se qualquer dia poderia receber seus amigos em casa para dividir com eles as pequenas alegrias que não tinha. Mas eles foram convidados a contar tudo o que sabiam.
De nada sabiam, foi o que disseram entre lágrimas.
Já que ele não sabia ser mau, Fulano de Tal descobriu outro modo de quebrar com o efeito da indiferença, outra maneira de ser igualmente cruel, uma vez que somente um ato extremo de crueldade abalaria corações calejados em um mundo regido pela indiferença.
Ele queria mesmo ter escrito aquelas cartas e diários secretos, mas agora é tarde demais.
Nunca falou a respeito de si mesmo, e não seria agora que começaria a falar.
Histórias podem ser inventadas, contadas e recontadas ao gosto de quem as imagina. Fulano de Tal sabe que pode ser visto como um bode expiatório, o sacrifício necessário, assim como pode ser visto como aquele que foi vencido.
Ele consegue imaginar o que irão dizer.
“Covarde. Não aguentou o tranco. Ele sempre me pareceu um morto-vivo. Foi culpa daqueles amigos estranhos. Eles envenenaram a cabeça daquele rapaz. Onde esteve aquela mãe? Onde estava o pai? Deve ter algo a ver com as músicas daquele cara que se matou.”
Fulano de Tal sorri, tentando imaginar todas as coisas que diriam logo na manhã seguinte, todas as histórias que, de algum modo, acrescentariam mais camadas à história verdadeira, aparentemente vazia de emoções. Sorri abrindo o armário de remédios no banheiro e pegando um frasco de comprimidos para dormir. Ele olha para o frasco e desmancha o sorriso.
Volta ao quarto, de onde não se lembra de ter saído, e se deita na cama. Hora de dormir. De mergulhar num sono profundo, sem sonhos.
Sente o frasco entre os dedos suados. Dedos que suam frio. Está com medo, pensando no quanto sua mãe ficaria machucada, quando ele apenas quer que ela siga em frente agora que não mais o teria como uma lembrança de suas maiores frustrações. Ela fingia sentir alegria com as pequenas conquistas do filho, mas nem sequer se deu ao trabalho de deixar os comprimidos longe de seu alcance por mais tempo. Ele sempre soube que nunca foi o filho perfeito.
Vamos... Anda logo... Vamos... Anda logo...
Sua alma murmurou, estava sem forças para gritar.
Quanto mais demorasse, mais difícil seria.
Deitado, Fulano de Tal abre o frasco e enche a palma da mão de comprimidos. Sua mão começa a tremer a caminho de sua boca; seus lábios estão igualmente trêmulos. Se não fizesse agora, nunca mais faria.
É neste momento que um grito repentino quebra o silêncio da noite.
O susto provoca um solavanco no corpo do rapaz, e sua mão solta os comprimidos, derrubando-os no peito e no pescoço. Num momento ele estava perto de consumar seu ato, e no momento seguinte...
Outro grito igual ao primeiro vem logo em seguida, depois mais outro, e outro – num mesmo padrão, seguindo o mesmo intervalo entre gritos e silêncios. O telefone que nunca toca para ele. Madrugada. Um mau presságio.
Dopada, Mamãe não atenderia. Bela adormecida.
Fulano de Tal se levanta da cama, derruba frasco e comprimidos na cama e no chão, e corre para a sala. Esquece a si mesmo nos comprimidos abandonados, tira o telefone da base e o atende depois do sexto toque.
Alô?
Fulano?
Uma voz embargada pelo choro.
Sim. Quem é?
Fulano, aqui é Beltrano.
Um de seus amigos. Como foi que ele conseguiu o seu número? Nunca telefonaram para sua casa perguntando por ele, e as pessoas apenas perguntam se ele está bem por intermédio de sua mãe, uma pergunta terceirizada.
Ele não se lembra de alguma vez ter dado o número do telefone para algum de seus amigos; mas, considerando a confusão mental crônica que o aflige, ele não se surpreende com a ideia de ter esquecido.
 Caminha de volta para o quarto, levando o telefone sem fio. Senta na cama e apalpa o travesseiro amassado enquanto conversa.
O que houve?
Eu... Eu... Eu quase fiz uma loucura, cara.
Silêncio curto.
Você entende?
Silêncio.
Informação processada pela mente.
Compreensão.
Sim. Entendo.
Eu liguei para você porque... Sabe, você sempre me pareceu ser o mais forte entre nós. Você é o que parece estar mais inteiro, mesmo depois de tudo o que te aconteceu. É o único que tem a chance de seguir em frente. Nunca disse isso, mas sempre tem uma primeira vez para tudo, não é mesmo?
Silêncio prolongado. Respiração de ambos os lados. Fulano para de apalpar o travesseiro e pensa um pouco a respeito do que ouviu.
Seria ele o único com chances de seguir em frente? Pensando melhor, ele realmente tem muito mais em sua vida do que alguns de seus amigos: ele tem um teto sobre sua cabeça e... Bom, eles também têm; ele tem panela cheia e nunca passou fome na vida... Tudo bem, seus amigos também não.
Seja como for, Beltrano vê em Fulano algo que falta nele mesmo e nos outros, algo que Fulano desconhece existir, algo que nunca sentiu estar ali.
Então...
Fulano? Beltrano diz, agora sem choro na voz. Alô?
Fulano de Tal chora em silêncio. Lágrimas grossas fazem seus olhos arderem.
Você está aí?
Sim, ele está.
Sim, ainda estou aqui.
Tenta conter o choro, mas o fluxo de lágrimas continua a deslizar pelo rosto.
Sua voz não pode trai-lo agora. Beltrano ainda deve pensar que o amigo continua a ser o mais forte entre eles.
Pergunta o que sempre quis ouvir.
Precisa de alguma coisa?
Sim. Eu... Eu não quero ficar sozinho. Você pode vir me encontrar aqui no portão?
Claro.
Você promete que vem?
Prometo.
Obrigado, Fulano.
Há gratidão naquela voz. E o próprio Fulano de Tal sente uma vontade repentina de agradecer, mas não o faz. Precisando de ajuda, foi seu amigo quem o ajudou primeiro; mas agora é a sua vez de ajudar, apesar de ainda não saber como.
Fulano de Tal se despede do amigo e desliga o telefone. Levanta da cama e olha para baixo. Vê os comprimidos espalhados entre os lençóis e no chão frio, e eles parecem hipnotiza-lo com uma promessa não pronunciada. Mas não demora a lembrar da promessa inadiável que fez ao telefone, o propósito repentino que encontraram para ele esta noite, e que pode mudar os rumos desta história.

O fim pode esperar.
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